domingo, 17 de janeiro de 2010

Separador de Tempos

Tenho saudades de ler nos transportes públicos, às vezes, sofregamente, entre paragens, quase «travando com os pés» o metro ou o comboio para poder ler, até ao fim, aquele capítulo, aquele parágrafo.
As viagens de transportes – entre a capital e os subúrbios - eram também uma espécie de separador entre o dia e a noite (ou a noite e o dia, claro), um espaço de reorganização que perdi quando me mudei para um mundo mais pequeno.
Ganhei muitas outras coisas – como chegar a casa rapidamente – melhor: vir a casa, num instantinho, entre tarefas diferentes, todas muito perto. Mas há sempre coisas que se perdem, quando ganhamos outras…
Por isso, este fim-de-semana, quando guardei a escova de dentes e o pijama no saco, quando corri o fecho, dei as voltas na chave da casa e fechei o porta-bagagens, havia uma certa excitação em tudo o que fazia.
Uma viagem – ainda por cima por caminhos conhecidos – ia proporcionar-me um espaço que há muito não tinha.
Foi um tempo importante de me relacionar com muitas ideias que por aqui vão pululando: organizar, relativizar, priorizar, acalmar pequenas ideias irrequietas que, por serem ainda muito jovens, não têm a calma de se colocar no seu lugar, saltitam constantemente, não deixando ver os prós e os contras, outras que de tão rejeitadas, ameaçam desistir, envoltas numa falta de auto-estima que não merecem…Ouvir as músicas inteiras, analisar as letras, algumas que calam cá fundo. Saber que estou presa na viagem, no cumprimento de um roteiro físico, mas que isso me dá tempo para me renovar interiormente: uma viagem é sempre um separador de dias, de tempos, uma quebra na rotina, um momento revigorante.
Sentimentos de culpa à parte, os livros fechados no apartamento, até ao meu regresso, um regresso que se quer renovado. Uma boa parte da ânsia de partir, prende-se com a vontade de chegar...diferente.
Acabou-se o fim-de-semana, separador de dias, de tempos, organizador de ideias e projectos no dossier colorido da vida.

3 comentários:

josé luís disse...

sabe lá a quantidade de vezes que "travo o metro com os pés", exactamente para que o tempo da leitura se coadune com o tempo da viagem...
enfim, sincronismos apetecidos por quem usa o metro todos os dias e aproveita os trajectos para ler.
por vezes estou a gostar tanto do que estou a ler, que dou por mim a pensar: "o que calhava mesmo bem agora era o metro ter um furo..."
;-)

Escrivaninha disse...

LOL

Ninguém.pt disse...

«... não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada.»

Poema da memória

Havia no meu tempo um rio chamado Tejo
que se estendia ao Sol na linha do horizonte.
Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia
exactamente um espelho
porque, do que sabia,
só um espelho com isso se parecia.

De joelhos no banco, o busto inteiriçado,
só tinha olhos para o rio distante,
os olhos do animal embalsamado
mas vivo
na vítrea fixidez dos olhos penetrantes.
Diria o rio que havia no seu tempo
um recorte quadrado, ao longe, na linha do horizonte,
onde dois grandes olhos,
grandes e ávidos, fixos e pasmados,
o fitavam sem tréguas nem cansaço.
Eram dois olhos grandes,
olhos de bicho atento
que espera apenas por amor de esperar.

E por que não galgar sobre os telhados,
os telhados vermelhos
das casas baixas com varandas verdes
e nas varandas verdes, sardinheiras?
Ai se fosse o da história que voava
com asas grandes, grandes, flutuantes,
e poisava onde bem lhe apetecia,
e espreitava pelos vidros das janelas
das casas baixas com varandas verdes!
Ai que bom seria!
Espreitar não, que é feio,
mas ir até ao longe e tocar nele,
e nele ver os seus olhos repetidos,
grandes e húmidos, vorazes e inocentes.
Como seria bom!

Descaem-se-me as pálpebras e, com isso,
(tão simples isso)
não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada.


António Gedeão