quarta-feira, 25 de março de 2020

Solitário Colectivo

Hoje achei que eu e a casa precisávamos de voltar ao normal, ou melhor, de criar um novo normal. Como sempre apregoo aos meus alunos nada nasce do nada e por isso tentei imitar de alguma maneira os ritmos e estilos meus e da casa. Isto porque hoje seria dia de a casa ser limpa: aquele que eu costumava definir como o dia mais feliz da minha semana, quando eu começava o dia com a alegria e atenção da minha amiga que me limpa a casa, depois saía e, quando voltava a casa estava limpa. Era um momento de felicidade ímpar!
Claro que a semana passada a casa ficou por limpar. Esperançada, eu, numa rápida normalidade, assegurei apenas com esmero o asseio da cozinha: divisão da casa que já frequentei mais estes dias do que nos mais de seis anos que habito este apartamento.
Ontem a minha amiga ligou: "Acho que ainda não vou esta semana...
- Claro que não vem. Nem nesta nem nas próximas. Mantenha-se em segurança, por favor, que eu tenho mãozinhas, bracinhos e perninhas (só me falta mesmo a vontade) e cá me arranjarei."
De boas intenções está o inferno cheio, diz o povo e com razão. As intenções não doem nada e formulam-se rapida e sinceramente. Ao adormecer sabia qual o mapa de tarefas do meu dia. À hora de almoço (que já decidira o que seria) a casa estaria a brilhar. Pelo menos o chão e bancadas. Decidi que, para que o esforço não fosse muito grande, limpar o pó e lavar as janelas seria para outro momento.
E a manhã começou bonita...Seria um desperdício não tomar o pequeno almoço na varanda e prolongar um pouco a bica com um novo capítulo do interessante livro que tenho frequentado ultimamente.  Depois era impreterível que começasse dois jogos de scrabble online, função garantida por ontem ter ganho os últimos jogos do dia aos meus dois adversários mais constantes. E até podia deixar para depois o círculo da palavra diária que a aplicação me oferece, mas este era tão fácil que o resolvi de uma vez.
Como de manhã se está fresco, tinha decidido antes das limpezas (já percebi porque o dizemos sempre no plural: uma carga de trabalhos tão grande nunca poderia ser singular) fazer uma revisão de um texto de um amigo que precisava cumprir um prazo. "Oh Diabo! O computador não me permite o acesso aos programas, tem uma qualquer necessidade de permissão que não sei resolver...não faz mal: escrevo tudo num papel e depois, num instante, lhe faço as minhas sugestões."
Ai afinal isto não é tão simples assim: "na segunda linha do 3º parágrafo da primeira folha...creio que ficaria bem uma vírgula...não, essa não está no 3º parágrafo...vamos, calma..."
E o telefone chora com uma mensagem de uma amiga que perdeu uma idosa da família com este monstro do vírus. Espera! Não posso ignorar. Estamos isolados mas não sozinhos: Como estás? Como foi? Vai haver funeral?...
Tudo se torna tão denso sem um ombro para chorar, uns braços para conter em simultâneo a dor e o conforto...
Bem, vamos lá: "Mas como raio é que já é meio dia?" Aspira, passa detergente, o espelho, a sanita; que lindo é o soalho do meu quarto, mas não me recordava que era tão grande!
Toca o telefone: "Sim, já sei, mas só me responde por mensagem escrita, deve estar a sofrer muito...temos de estar cá (cada um em seu sítio) para ela. Olha tenho de ir continuar a limpeza da manhã.(...) O quê? Como já é de tarde? Quero lá saber...se ainda não almocei e estou nas tarefas da manhã, ainda não é de tarde. Vou continuar."
A sala. Bolas! Isto é mesmo um salão. As gatas quando se apanham em molhos de pelo pelo chão não têm assim tanto encanto...Recuo, recuo, pelo corredor, até terminar na casa de banho que já deve estar seca. Bem...não completamente, mas dá para tomar um banho.
Estou cheia de fome. Não vou aguentar fazer nada para almoçar. Há a sopa do jantar: invertem-se os papeis. Pronto. Sopa e tostas com queijo fresco. Assim no tabuleiro, tudo composto, parece até gourmet.
Como é que o chão da sala ainda não secou? Não posso ir para lá. Está a dar o sol no escritório. Passo pela varanda e aterro neste paraíso da tarde, na hora em que alguns já se levantam da sesta.
Estou moída e frustrada. Como é que a senhora faz muito mais do que isto duas vezes ao dia e tem um ar tão prático e bem disposto?
Olha o telefone a tocar. Mas o corredor ainda está molhado...paciência. Fico aqui a escrever. Não deve ser nada urgente. Afinal estou em isolamento social, o que é que alguém pode querer de mim?
Credo! Estou tão cansada! Como é que os que estão em teletrabalho conseguem trabalhar e fazer tudo o que dantes (na nossa vida normal ) era tarefa de outros: tomar conta das crianças, limpar, arrumar, fazer compras, arranjar o cabelo, as sobrancelhas, passar a roupa a ferro, passear o cão?
Eu acho que vai haver muita gente esgotada não tarda nada!


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