domingo, 1 de abril de 2012

Sem título

Quando eu era pequena, numa infância sem entreténs eletrónicos, durante o Verão passava muito tempo a observar o carreiro de formigas que se formava no degrau de pedra castanha que separava a cozinha da pequena marquise que, em casa da minha avó, era o acesso à casa de banho e ao quintal.
Entediada com as longas férias divertia-me a molhar com um pouco de água o carreiro das formiguinhas que, durante uns segundos ficavam desorientadas até que a água secava e elas retomavam o seu curso normal, umas atrás das outras, num plano delineado com mestria e certamente pouco contestado. Era um bocadinho cruel...mas não muito e fascinava-me a capacidade que os pequenos bichinhos tinham de recuperar o normal curso da sua vida.
Tenho pensado muito nisto, crendo que, lá por cima, alguém, talvez entediado, resolveu molhar com água o meu carreiro e ficar a ver-me desorientada, esperando, sem grande crueldade, que eu saiba recuperar o meu percurso normal.
Eu tinha um esquema muito bem planeado para estes tempos de suspensão da atividade letiva, de pausa aproveitada para outras tarefas que aguardam disponibilidade: tudo encaixava perfeitamente, numa sequência lógica, apertadinha que, se cumprida, me deixaria muito feliz e realizada.
Estava tudo a correr bem. A viagem de expresso e de comboio foi muito bem aproveitada a construir o powerpoint adequado à comunicação de sexta-feira. De tarde já tinha sido feito o necessário upgrade do visual (que falar em público merece uma atenção especial a certos pormenores) e o tempo estava à conta para chegar à casa citadina de familiares, comer uma sopinha quente e beneficiar de equipamento alheio para compor os slides já decididos.
A satisfação devia transparecer-me do olhar, talvez a confiança, ou a credulidade de quem segura simpaticamente a porta para o rapaz que no meu encalce faz menção de entrar no prédio.
A forma como ilustrou o gesto de pegar na minha pasta preta com a frase "Se gritas, morres" foi de facto inesperada.
Ninguém pode dizer que sabe como vai enfrentar uma coisa destas! Eu ainda estou surpreendida comigo. Fiz tudo para segurar a pasta: o meu trabalho, terminado há pouco, necessário para o cumprimento do compromisso do dia seguinte, que era, afinal, a razão da minha presença ali, àquela hora, no dia em que a rua estava pouco povoada em detrimento da vasta assistência aos écrans do jogo do Sporting.
Respondendo-lhe no mesmo tom "por tu", troquei a pasta pela mochila: Eu dou-te o dinheiro, leva o dinheiro.
Achava eu que ele esperaria que eu retirasse a carteira da mochila.
Saiu com tudo o que trazemos na mala diária (e é tanta coisa, meu Deus!) deixando-me então consciente da minha impotência e do meu desespero, da injustiça de toda a situação.
E então gritei, gritei a plenos pulmões, ignorando o aviso - e ele tinha sido bem explícito e repetido mais que uma vez: Se gritas, morres! - gritei muitas vezes a palavra 'Socorro'. E eu nunca tinha acreditado que de facto alguém se lembrasse de gritar Socorro!
Ele voltou para trás, furioso, agressivo, ele tinha sido bem explícito e eu estava a desobedecer-lhe (Gosto de pensar que está a reequacionar a carreira escolhida, por constatar a falta de autoridade ou, num cenário mais atroz, que decidiu silenciar de facto os próximos visados, e aí não gosto tanto, claro: tudo isto é assustador). Só então me apercebi do perigo, da estupidez, dos avisos, que no Brasil são ainda mais fortes do que aqui: Nunca resistir ao ladrão!
Fechei-lhe a porta na cara.
Foi o meu momento de glória: Fechei-lhe a porta na cara e continuei a gritar, mais por vingança do que por acreditar na eficácia.
O único efeito foi assustar toda a gente do prédio que, obviamente, não podia fazer nada.
Pedi desculpa, muita desculpa, desci a escada, já escoltada pela família.
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A sexta feira decorreu normal. Fiz tudo o que tinha de fazer, mas tudo o resto se desmoronou: as tarefas, a partida para longe... A facilidade com que nos movimentamos na vida depende do conteúdo da mala diária.
Só ontem, já em casa, comecei a recuperar o equilíbrio, a aperceber-me do perigo, das implicações de tudo isto (e esperemos que não haja outras, que os meus documentos andam agora por aí).

As lágrimas já tentaram lavar o desespero, o desamparo.

Voltam à cabeça imagens esquecidas. Afinal, não estavam esquecidas! Como daquela vez em que te contei ao telefone que quase tinha ficado debaixo de um camião com o meu carro, numa manobra estúpida e errada. Reencontrámo-nos dois dias depois num MacDonald's. Abraçaste-me muito e disseste que eu tinha de ter cuidado, porque não me querias perder.
Fez-me falta esse abraço (um abraço desses) até me lembrar que depois me perdeste por iniciativa própria e nunca deste parte aos perdidos e achados da polícia.
Ter-me-ia feito falta um abraço desses e uma falsa promessa? Não. Basta-me saber que essas coisas existem fora dos filmes, que os filmes existem na vida real, que se grita socorro, que se sua medo, que se chora desespero, que se respira injustiça...que se recupera o carreiro quando a água das lágrimas seca e se percebe que o sol nunca deixou de brilhar.

A estatística do jornal deu-me o consolo de que ser assaltada não é uma falta de competência, não é uma marca de vergonha: Os crimes por esticão aumentaram não sei quantos por cento em Portugal...Afinal, pode fazer-se o quê? Nada. Os herois estão todos mortos, os ladrões sempre existiram e, para isso, os roubados também.
A vida seguirá normalmente depois desta experiência.
Os planos continuarão a ser feitos, mas com um sentido mais relativo: alguém pode, de maneira inesperada, deitar água no nosso carreiro e ficar a ver-nos - desejavelmente de maneira não muito cruel - recuperar o rumo.
E, talvez, aprender com isso.

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