sexta-feira, 16 de março de 2012

Depois do Escritor

Este escritor leva a questão a extremos, mas, por vezes, interrogo-me sobre a legitimidade de publicar textos que um autor deliberadamente não publicou. Se o próprio autor não os terminou ou não os considerou suficientemente bons, não será uma traição divulgá-los?
Ou será que a nossa crítica tem uma medida especial para textos "imperfeitos" de autores consagrados, que se tornam assim objetos de uma atenção e valorização que não têm a ver com o texto em si, mas com todo um prestígio de um autor? Será justo? Será sensato? Será correto?

A queimada
Queime tudo o que puder:
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arterioesclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas.



Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.
Seja como os lobos: more num covil
e só mostre à canalha das ruas
os seus dentes afiados.

 
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica
Destrua os poemas inacabados, os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.


Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita.


Ledo Ivo

3 comentários:

Ninguém.pt disse...

Conselhos péssimos!

Porque só poderíamos não deixar rabos de palha se deixássemos de viver antes de morrer — a tempo de apagar os vestígios que consideramos indignos da memória que gostaríamos que fosse a que perdura.
Quem vive até ao último segundo de vida deixará inevitavelmente alguma coisa incompleta — principalmente a vida...


CAIS


Ténue é o cais
no Inverno frio.
Ténue é o voo
do pássaro cinzento.
Ténue é o sono
que adormece o navio.
No vago cais
do balouço da bruma
ténue é a estrela
que um peixe morde.
Ténue é o porto
nos olhos do casario.
Mas o que em fora nos dilui
faz-nos exactos por dentro.


Fernando Namora

Beijito, Miss.

Escrivaninha disse...

Deixar a vida incompleta é uma boa imagem, porque dá-la por terminada deve ser terrível...e ficar à espera...

Mesmo assim, não sei se sou a favor da publicação de coisas não inteiramente aprovadas pelo autor.

Beijito.

Ninguém.pt disse...

Pois, eu entendo o seu ponto de vista, Miss, mas se seguíssemos sempre uma norma de enterrar com os autores as obras não dadas por concluídas por eles, quanto mais pobres estaríamos todos!

Olhe só a obra inédita de Fernando Pessoa.

Olhe só o que de Eça foi publicado apenas depois da morte do autor:
• A Cidade e as Serras
• Contos
• Prosas bárbaras
• Cartas de Inglaterra
• Ecos de Paris
• Cartas familiares e bilhetes de Paris
• Notas contemporâneas
• Últimas páginas
• A Capital
• O Conde de Abranhos
• Alves & Companhia
• Correspondência
• O Egipto
• Cartas inéditas de Fradique Mendes

Claro que há casos e casos, mas onde fixaríamos as fronteiras? Se o bom-senso dos herdeiros não for a fronteira, o que poderia sê-lo?

Beijito, Miss Escrevedora-Angustiada-com-a-Obra-Inédita...