quarta-feira, 14 de março de 2012

D. Vitorina

"Então vizinha?..."
Começavam sempre assim os nossos diálogos.
Tinha o cabelo branco e as costas muito curvadas, mas conservava um sorriso franco e um brilhozinho nos olhos, que não me deixaram nunca perceber que já estava perto dos 80 anos.
Chamava-me "menina", achava muito bem que eu passeasse, comesse fora e não me detivesse com "as coisas da casa", que a vida é para ser vivida.
Sofria porque andava muito mais devagar que antigamente e penso que também ela (como muitas outras pessoas que conheço) não percebia como foi isto de envelhecer, assim...ainda ontem era nova...
Quando a porta se abria, víamos logo as fotografias dos filhos e dos netos: a riqueza dela!
Talvez por isso a fui associando à minha avó (embora ontem tenha percebido que ela nascera na mesma altura que a minha mãe, parece que também estou a perder a capacidade de contar a minha idade).
Às vezes estávamos semanas sem nos vermos - ritmos desencontrados, vidas mais apressadas - mas sabíamos quase sempre uma da outra pois eu estacionava em frente à porta dela. Por vezes ela abria a porta só para me cumprimentar.
Outras vezes encontrávamo-nos no café, onde ela e outras duas senhoras aqui da rua, tomavam diariamente o seu carioca.
Uma das vezes em que nos cruzámos eu disse: Não a tenho visto.
E ela respondeu: pois, temos andado desencontradas. Mas eu, antes de me deitar, espreito aqui pelas tabuinhas e, quando vejo o carro da menina, vou-me deitar descansada.
Talvez por tudo isto eu sinta que ontem enterrei outra vez a minha mãe e a minha avó. Morreu uma pessoa que tomava conta de mim como de uma menina.

2 comentários:

Ninguém.pt disse...

É bom ter laços, são como âncoras que nos prendem em dias de tempestade.

SIM, ESTÁ TUDO CERTO

Sim, está tudo certo.
Está tudo perfeitamente certo.
O pior é que está tudo errado.
Bem sei que esta casa é pintada de cinzento

Bem sei qual é o número desta casa —
Não sei, mas poderei saber, como está avaliada
Nessas oficinas de impostos que existem para isto —
Bem sei, bem sei...
Mas o pior é que há almas lá dentro
E a Tesouraria de Finanças não conseguiu livrar
A vizinha do lado de lhe morrer o filho.
A Repartição de não sei quê não pode evitar
Que o marido da vizinha do andar mais acima lhe fugisse com a cunhada...
Mas, está claro, está tudo certo...
E, excepto estar errado, é assim mesmo: está certo...


Álvaro de Campos

Beijito, Miss.

Escrivaninha disse...

É isso mesmo: não deixando de estar certo, está tudo errado.

(Caramba, eu não sei mesmo como consegue encontrar assim os poemas certos, mas Deus o abençoe).

Beijito.