quarta-feira, 16 de maio de 2012

Acidente

"Saiu de casa a pensar no rumo que a vida tinha levado: a filha a estudar fora, o irmão doente, os dias algo entediantes, o aproximar da reforma...Olhou as nuvens cinzentas e sentiu-se irritado.
Engraçado como a nossa percepção das coisas vai mudando com o tempo. Tanto ansiara pela reforma e agora que ela estava à porta...
Não conseguiu evitar um sorriso amargo.
Afinal queria a reforma era quando era novo, quando ainda não tinha perdido a energia, quando tinha ganas de correr mundo, ler todos os livros e fazer as fotos mais fabulosas de todas. Essas fotos iriam ilustrar os seus livros de relatos de viagem, que se tornariam best-sellers...
Agora...agora o ritmo do trabalho repetido vezes sem conta tinha-o esmagado, afastado a energia, tinha-o tornado refém de uma rotina que receava perder.
Já não tinha vontade nem energia para correr o mundo, mas as riscas do pijama ameaçavam aprisioná-lo num resto de vida longo e penoso. Os amigos estavam velhos, já não tinha energia para fazer novas amizades, a mulher andava ensimesmada com a ausência da miúda e agreste com a perspectiva de terem de gastar dinheiro no lar do cunhado.
De alguma maneira não lhe apetecia passar o resto da vida com ela, mas...era uma espécia de pacote que tinha comprado em tempos, uma fatalidade sem data de validade...não, não queria mudar de mulher; talvez quisesse mudar a mulher; ou gostasse que a mulher não tivesse mudado...
Foi surpreendido pelo ruído do carro que se aproximava do passeio realizando uma inversão de marcha que lhe pareceu com velocidade excessiva. Olhou o carro que se dirigia a si.
A rapariga que dirigia o carro lançou para fora do vidro aberto: "Calma avôzinho. Não o vou atropelar." E sorriu abertamente.
Nesse momento ele teve a certeza que tinha sido atropelado!
Sabia de curas para acidentes de viação, mas desconhecia se estes acidentes da vida teria reparação.
Como se recuperaria de ter sido atropelado pela palavra avôzinho? Quando teria alta da condição de ansião? 
Estava ferido. Sentia-se ferido de morte pela juventude daquela rapariga que empunhava imprudentemente a lança do Tempo."

2 comentários:

Ninguém.pt disse...

Eu confirmo a opinião do poeta, pese embora tudo que se vai perdendo, toda a incapacidade que se vai ganhando.

ENVELHECER

É bom envelhecer!

Sentir cair o tempo,
magro fio de areia,
numa ampulheta inexistente!

Passam casais jovens
abraçados!...

As árvores
balançam novos ramos!...

E o fio de areia
a cair, a cair, a cair...


Saul Dias

Talvez porque tenho alva capilaridade desde muito novo, habituei-me há muito a que me olhassem como mais velho do que era — e talvez isso me tenha evitado um acidente...

Beijito, Miss.

Escrivaninha disse...

É um bom seguro, esse!

Beijito, Mestre.