segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O tempo

Terei que aceitar que já não sou jovem.
É uma constatação; das mais jovens deste ano.
E não sei se tenho muita pena...

Hoje dediquei o dia às compras; por várias razões: a senhora vinha cá limpar a casa e duas mulheres numa casa são demais; a escola recomeça amanhã e não me apetece pensar nisso; ainda me faltavam comprar prendas de Natal para pessoas que só verei já neste ano; resolvi espreitar os saldos, pode ser que haja boas oportunidades.
Dirigi-me então a uma cidade perto, que tem um centro comercial maior que o de cá e também comércio tradicional.
Na loja dos pijamas lá enfeirei qualquer coisa, deliciada com as novas possibilidades de construirmos nós os conjuntos, pois as peças são separadas e eu tenho sempre a sensação de que só eu farei aquela combinação de peças. (Também há poucas probabilidades de comprovar a minha teoria, pois não tenho sido muito convidada para festas de pijama).
A funcionária (uma jovem) estava à beira de um ataque de nervos: o sistema não funcionava! Chamou a supervisora - que se pôs de imediato ao telefone "para a informática" - e avisou-me "Vou ter de lhe fazer um talão manual".
"Com certeza", respondi-lhe.
"Não tens de dizer nada", disse-lhe a supervisora.
"Mas a senhora vai ter de esperar mais..."
"Eu não me importo", tentei acalmá-la, "Eu ainda sou do tempo em que o tempo das compras incluía o tempo de escrever a factura ou recibo"
Olharam as duas para mim com pena e sobressalto. Acho que recearam que eu fosse fazer um discurso sobre "o meu tempo".
"Eu estou tão stressada", rematou a moça.
"E a informática que não me responde", murmurou no mesmo tom stressado a outra, como se tentasse adivinhar porque é que a D. Informática não largava a revista de crochet e não corria para o telefone.
Apeteceu-me dizer qualquer coisa como "Quem sabe se a D. Informática não se estará a sentir mal...", mas recolhi a minha vontade de brincar porque as pessoas stressadas podem ficar muito agressivas.
Resolvi ir almoçar ao MacDonald's, depois de ter constatado que a minha pizzaria preferida da cidade é uma das recentes vítimas das faências das "piquenas e médias empresas". Caos total! Completamente cheio de jovens com filhos (duas gerações de apreciadores de McDonald's já se juntam por lá) e de reformados modernaços.
Os pais não têm paciência para os filhos! Mais uma vez percebo que o prolongamento do tempo de escola visa servir as famílias, não só porque não têm tempo para estar em casa com os filhos, mas, sobretudo porque não sabem estar com os filhos.
A rapariga à minha frente (devia ter uns vinte e três, vinte cinco anos) envergava calções de fazenda sobre collants opacas e umas botas curtas com pelo; tinha olhos azuis e uma pele muito fresca. Estava nitidamente com os amigos - mais três criaturas jovens e descontraídas, na casa dos 20 - e tinha trazido os dois filhos. Berrava com eles com desespero e desorientação, porque as crianças não ficavam sossegadas a guardar a mesa...A certa altura disse para os amigos "De facto, é melhor nunca os tirar de casa. Eles não sabem estar fora de casa e ao menos lá não envergonham ninguém."
Mais uma vez guardei a minha vontade de intervir.
Atrás de mim quatro jovens em idade de serem estudantes discorriam sobre o tempo que se gastava nas filas: "Oh men! Será que aqui ainda não conhecem aquelas máquinas? Escolhes o que queres comer e pronto. Atendimento com pessoas é que dá..."
Estão a ver o que aconteceu? Pois. Guardei mais uma vez a minha vontade de intervir. De lhes perguntar se gostariam que uma máquina lhes roubasse o emprego, que lhes daria dinheiro para poderem comprar comida nas máquinas.
Abriu outra caixa e a turba dirigiu-se alarvemente para lá. Ninguém se ralou com quem estava na fila, a ordem de chegada...coisas de pessoas, 'tão a ver?
Aguardei calmamente a minha vez de ser atendida por pessoas, pedi o menu e observei que todos os que tinham pressa ainda lá ficaram a chupar os dedos de molhos brancos e vermelhos. Para que queriam o tempo então? Para que é que andam a correr? Para chegar a velhos mais depressa e depois perceberem que as máquinas não lhes fazem companhia? Ou se calhar estes já são da geração que, de tão ligados à máquina, não reparam que o tempo passou.
Recolho a casa um bocadinho triste.
Preparo-me para organizar as coisas para amanhã e, na lista das prioridades, estão primeiro os impressos que tenho de fazer assinar pelos pais, a entrega de uns impressos na Direção, a marcação de uma série de coisas...e só no fim as aulas das crianças.
Tenho tantas saudades do tempo em que o mais importante era perguntar-lhes como tinham corrido as férias e falar-lhes dos livros que tinha lido nos dias em que tínhamos estado separados.
Eu sou a mesma, os programas também. O que mudou? Os tempos? Ou o nosso uso do tempo...
Tenho saudades de outro tempo!

4 comentários:

Ninguém.pt disse...

Bela peça do Repórter Y!

Acho eu, que quase nada encontro, que o que mais mudou foi a nossa percepção do tempo, um assumir da lufa-lufa que nos faz parecer baratas tontas à procura ninguém sabe bem do quê.

Privilegiamos a velocidade com que ficamos disponíveis para tarefas que ainda não sabemos bem quais são, tomamos opções com base em pressupostos de necessidades que ainda não temos.

E, sim, é verdade: sempre a olhar o relógio, não vemos as pessoas por quem passamos, não guardamos para as que nos são queridas tempo nenhum, vamo-nos afastando cada vez mais uns dos outros — por falta de tempo...

Um fenómeno a que já assisti várias vezes: faltando a electricidade durante umas horas, ocupamo-las muito mais humanamente, falando e interagindo uns com os outros. E, curiosamente, quando voltamos à correria habitual ela não é muito diferente da anterior...

A Miss, privilegiada moradora da província, pode fazer comparação com a sua terra natal e certamente verifica que por aí o tempo, mesmo assim, é menos velocista do que nas grandes cidades, não concorda?

Beijito.

Escrivaninha disse...

Concordo plenamente e essa é uma das razões da minha fixação por cá.
Gosto particularmente de não ter filas de trânsito. Quando saio de casa para a escola e vice-versa demoro o tempo de transpor a distância física que medeia estes lugares e quase sempre tenho lugar para o carro, ou, melhor ainda, muitas vezes ando a pé.
No entanto as pessoas também se queixam muito do tempo, da falta dele, e cada vez temos menos tempo uns para os outros por causa disto daquilo e daqueloutro, que outra definição não encontro para a forma como vemos o tempo passar...em nada.
Mas o tempo de espera, o tempo "de vagar" ( a minha avó dizia ter vagar para...ou estar sem vagar, uma expressão que se perdeu, se calhar por todos os lugares do tempo estarem agora ocupados) faz muita falta. Eram tempos de interrogações, de instrospecção, de dúvidas e, logo, de procura de respostas, que agora não existe. Tudo é imediato. E tudo o que necessitava de tempo de amadurecimento tende a desaparecer.
Creio que nunca enfrentámos uma situação assim: não há vazios no tempo. Tanto aproveitámos o tempo que o perdemos...

Beijito, Mestre.

Ninguém.pt disse...

Sim, os antigos tinham aquela sabedoria de gerir o tempo de modo que tinham todo o tempo do mundo — incluindo tempo para andar devagar, tempo de vagar...

Vejamos o que diz o poeta:

Tempo

Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.

Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!


Miguel Torga

Somos nós mesmos, e não outros por nós, quem vira a ampulheta quando a areia deixa de correr...
Tirando umas poucas coisas inadiáveis, quase tudo o resto está na nossa mão a etiqueta que lhe colocamos: "urgente" porquê?, será morte de artista?, se não limpar agora o que acontecerá?, etc.

Tendemos a chamar preguiçosos aos que não nos acompanham na correria, os que deixam correr o tempo sem correrem também, não é? Que o digam alentejanos, africanos, brasileiros, etc, etc.
Afinal eles são é mais sábios do que nós.

Beijito, Miss.

Escrivaninha disse...

É inveja, é pura inveja de não podermos ser como eles.
Porque é preciso muita força de vontade e alguma prática para resistir à histeria colectiva que nos envolve. Não nos dão tempo para pensar e, nós...embarcamos.

Na Bahia ostentavam-se umas t-shirts turísticas com o dístico "Xô stress!"
Tentemos ser bahianos!