quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Pais e Filhos

 Penso muitas vezes como teria sido a minha vida (e a das minhas irmãs) se o nosso pai não tivesse morrido tão cedo, se estivesse vivo quando todas tivéssemos chegado à idade adulta e se nessa altura ele ainda se dedicasse ao comércio, provavelmente com mais do que a primeira loja com que começou.

Na realidade eu tive liberdade para escolher o meu caminho.

De certa maneira já filha do 25 de Abril, numa casa habitada maioritariamente por mulheres, fui mesmo incentivada a exercer a minha liberdade.

Claro que a minha mãe tinha sonhos para mim. Na realidade eu realizei-os. Mas os sonhos dela passavam por uma profissão em que me realizasse e tivesse segurança. O sonho da minha mãe era que eu fosse funcionária pública. Sim, esse era principalmente o sonho dela. Realizada, seria um bónus. Qualquer serviço público com ADSE e Caixa de Aposentações lhe serviria. Ela queria que eu tivesse uma vida segura.

Ficou um pouco abalada quando eu comecei a dizer que queria ser actriz, mas ela era uma mulher de convicções, muito esperta e intuiu que se me contrariasse, isso só iria fortalecer a minha decisão. Aproveitando-se de eu necessitar de mais um ano de estudos secundários para poder ingressar na carreira que queria, ocupou-se durante todo esse ano de seleccionar as mais infelizes histórias de actrizes caídas em desgraça. Admiro-lhe a estratégia e o empenho. Depois arremessava o nosso conflituoso relacionamento para cima da mesa e esgrimia: Queres o quê? Vir cá esmolar para comer? Não teres sequer dinheiro para viver numa casa tua? Dependeres de mim ou de outro alguém?

Ela sabia! Ela sabia que liberdade e independência eram as minhas maiores ambições e assim me fui chegando a uma carreira segura. Mas teria que ser licenciada: não queria ser funcionária administrativa, acorrentada a um serviço que me parecia repetitivo, entediante, nada desafiador. Optei, com o incentivo e apoio da minha mãe, por uma licenciatura em letras e começou-me a parecer muito aliciante a carreira de professora. Aí começou a campanha da minha mãe pelo ensino público: uma Carreira! Com ADSE e Caixa de Aposentações e a promessa de uma reforma por inteiro ainda em idade muito aproveitável. 

Algumas dessas "garantias" já desapareceram, mas posso dizer orgulhosamente que consegui juntar a realização profissional à "carreira" que a minha mãe ambicionava para mim e que até hoje consegui manter a minha independência e autonomia, viver sozinha, decidir da minha vida e pagar as minhas contas.

Tenho de lhe agradecer por isso. Devia tê-lo feito, mas as nossas conversas raramente incluíam mimos e agradecimentos, muito menos o reconhecimento da excelência e/ou importância da outra.

Como professora lido com muitos pais e filhos e com as expectativas deles. Tantas vezes já tive que engolir a minha revolta em relação a coisas que os miúdos me contam em que se revela uma total falta de respeito dos pais pela personalidade e anseios dos filhos, outras tantas tentei contornar as situações, mas em poucas consegui, perante os pais, defender que os jovens devem fazer o seu próprio caminho, que a infância e a juventude são caminhos de descoberta e de construção, cabendo aos pais apoiar, amparar, orientar, mas não dominar e determinar. Não conseguiria já enumerar quantas famílias têm já decidido o futuro dos filhos antes deles terminarem a escolaridade básica. Vejo muitas crianças a sofrer, a debaterem-se ou a definhar perante a intransigência dos pais face ao futuro que decidiram para os filhos. Como propriedade sua, que julgam que são. Muitas vezes vim para casa revoltada, triste, chorosa mesmo perante situações de incompreensão, de intransigência, de crianças e jovens ignorados ou apagados na sua individualidade. A vida não é dura só para os que não têm comer, é difícil também a muitos níveis para os que não têm sonhar...

Defendia muitas vezes nas minhas narrativas sobre os tempos de antanho que os mais felizes eram os mais pobres. E os meus meninos não acreditavam. Julgavam-me tonta. Tudo o que eles queriam era ter dinheiro e bens, sem perceberem que esse património, na maioria das vezes (e sobretudo em tempos em que a liberdade não era uma persona grata) era sobretudo um fardo, que o património sempre pagou impostos muito caros, neste caso ao condicionar carreiras, casamentos, decisões, ao hipotecar vidas. Sempre houve uma relação capitalista com o património. Afetos, liberdade e autonomia eram elementos ausentes em que as famílias educavam os seus descendentes para assumir as responsabilidades perante o património da família. E as expectativas das famílias eram diferentes para rapazes e raparigas, para o filho mais velho ou para os outros...mas sempre a abundância de património trazia (ou traz consigo) um elevado preço a pagar no condicionamento das escolhas e na gestão das expectativas, na permissão ou não de sonhos.

Pode ser uma visão muito romântica da realidade, certamente herdada deste meu espírito formado nas leituras do séc. XIX e do dealbar do XX, do advento da Liberdade, da Igualdade, do Feminismo, mas sinto sempre um aperto no peito quando se nega a uma criança o direito de sonhar, não por não poder dar-lhe o que a faria feliz, mas por não o considerar adequado dentro de um padrão rígido pré-estabelecido.

E sempre houve e continua a haver muitas famílias que se consideram donas dos filhos, que dispõem do seu futuro como de uma criação sua, sob a qual reclamam direitos de autoria. 

No meu ensino público não conheci filhos de grandes fortunas, onde penso que os casos devem ser ainda mais terríveis...mas já vi os suficientes para acreditar que em muitas famílias existem maus tratos psicológicos, falta de respeito pelos direitos das crianças e vidas a crescer mortas por dentro, hipotecadas a sonhos alheios.

Talvez por tudo isto tenha tido vontade de fixar aqui um extracto da última obra que li: 

                Archer, Jeffrey, Nem um tostão a mais, nem um tostão a menos, p. 21

"A única ambição de Roger era vir a ser oficial da marinha, mas, depois de terminar o curso em Dartmouth, tivera de regressar para retomar as rédeas do negócio da família, devido à saúde debilitada do pai. Estava há poucos meses na firma quando o pai faleceu. Roger gostaria de ter vendido a Sharpley & Son ao primeiro comprador que aparecesse, mas o pai incluíra uma cláusula no testamento na qual estipulava que, caso a firma fosse vendida antes de Roger fazer quarenta anos (sendo esse o último dia em que qualquer indivíduo podia alistar-se na marinha dos EUA), o dinheiro ganho com a venda seria dividido em partes iguais pelos outros familiares."

Decidido. Para cumprir, mesmo depois da morte, matando com a sua decisão todos os sonhos numa vala comum. O pai, o patriarca, o decisor da vida dos filhos. Ui! deu-me um arrepio! 


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