quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Tão longe!

O quarto estava escuro. Aquelas portadas de madeira vedavam realmente a luz da manhã, ou talvez ainda não houvesse luz lá fora. Por vezes o rádio acordava antes do dia.
Era o início da TSF, pelo menos creio que era o início. Era o tempo em que eu acordava com as notícias, uma jovem conscientemente informada, que eu era.
A notícia apanhou-me de surpresa. Não queria acreditar que ele tinha realmente morrido. Não era só ele que desaparecia: era todo um símbolo da Liberdade que eu gozava a grandes goladas, entre a Faculdade de Letras e o Município de Abril. E eu, que também irrompera no mundo, um dia em Abril, sentia-me uma personagem da História. Da História!
Hoje, evito criteriosamente os noticiáros, porque os considero uma caricatura de mau-gosto do Jornalismo e porque diariamente me agridem os sons e imagens de uma crise sem esperança, da perda de direitos adquiridos, num país que não quero, mas que vou vendo abatido pelos ditames de um capitalismo em agonia. Foi outra vez o rádio que me deu a notícia...
Chorei muito nessa manhã, no quarto obscurecido, numa manhã que já não podia ser clara, num ano em que o Abril ia ser mais pobre.
Espantei-me muito hoje, por constatar que já tinham passado 25 anos.
Só 25 anos? Já 25 anos?
25 anos se passaram, com os 'sós' e os 'jás' que cada um vai sentindo.
Na minha escola está um retrato do Zeca traçado pelo rápido executar de uma professora de Educação Visual. Que melhor local para estar um retrato do Zeca do que numa escola? Ele, que foi professor, que foi proibido de ser professor, porque queria ensinar Abril todos os meses.
De facto passaram 25 anos. E notam-se nas rugas deste país, triste e seco, por ausência de chuva e de esperança, neste mês tão longe desse Abril, aquele que, reza a voz do povo, será sempre das águas mil. 

2 comentários:

Ninguém.pt disse...

O Zeca tinha uma grande diferença da maioria dos portugueses: protestava, contestava, mas arregaçava as mangas e fazia.
Fazia um Portugal melhor cada vez que nos cantava, fazia-nos fazer nem que fosse para não o deixarmos só na crista da onda.
Agora somos de novo um grupo de resmungões, dizendo mal de tudo e de todos mas não mexendo um dedo para mudar o que está mal. Nem já sacudimos a canga que nos põem!

Só duas precisões, Miss:
• O Zeca desapareceu há 25 anos; a TSF fez agora 24...
• O provérbio "Em Abril, águas mil" é um resquício do tempo em que éramos agricultores e significa mais ou menos isto: "a água caída em Abril vale por mil". Confirme-se com estoutro: "Abril chuvoso e meio ventoso, ano formoso."

Beijito.

Escrivaninha disse...

Oh, Mestre!
Já estava com saudades suas e do blogue e da escrita.

Engraçado como a memória nos trai: eu juraria que era a TSF (mas já percebi que jurava em falso, não insisto). Provavelmente porque foi no mesmo rádio-despertador, com os números em cor verde que rasgavam a escuridão do quarto, que mais tarde - logo a seguir - ouvi a TSF. Estava em cima da escrivaninha (claro, eu tinha uma escrivaninha!) junto à porta, ficava escondido quando a minha mãe abria a porta do quarto.
A mesma mãe (até porque "Mãe, há só uma!) que me dizia os provérbios todos, alguns estranhamente rurais no meio da cidade, em que só se via ao longe um pedaço de campo onde hoje é o Casal de S. Brás.

Agradeço as precisões, mas, rigores à parte, não deixa de ser interessante ver como recordamos as coisas, sempre à nossa maneira, nem sempre da maneira certa...E, contra tudo o que ensino às crianças - a necessidade de confrontar tudo com as fontes históricas, antes de tirar conclusões - aqui ficamos pelas percepções e pelas memórias, permitindo uma excepção à regra do rigor. Essa fica para a outra, que tem nome e responsabilidades sociais. Eu...eu sou apenas a escrivaninha onde ela guarda as memórias e as sua impressões da realidade. Que são isso mesmo impressões, necessariamente imprecisas.

Beijito.