quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Chorar, com propriedade

Às vezes penso que o facto de chorarmos ao ler um livro ou ver um filme, depende mais da nossa vontade de chorar do que daquilo que lá está escrito.
Procurei um livro de Alice Vieira que tinha visto há meses nos escaparates e comprei-o ontem, já tarde, num centro comercial.
Hoje tenho dia inteiramente livre! Livre, de todo. Sem qualquer compromisso.
(Claro que tenho de limpar e arrumar, espreitam papéis e sobejam roupas a precisar de escolha, mas, para além de estender uma roupa que a máquina lavou durante a noite, hoje nada ficará por fazer, porque não há nada para fazer).
O sol brilha lá fora, iluminando muito as folhas que ainda persistem nas árvores e apetece-me imitar a roupa e colocar-me ao sol, a beneficiar do sol, no imenso terraço que comprei, quando percebi que trazia um pequeno apartamento anexo e dava para dormir de noite depois de tomar sol dia fora.
Coloquei em cima da mesa o Jornal de Letras e o livro de crónicas de Alice Vieira.
(Podia ter lido o JL na biblioteca pública, mas, comprá-lo, ostentá-lo debaixo do braço...reconheço que é uma vaidade que procura convencer-me - a mim e ao mundo - de que sou uma intelectual).
As crónicas de Alice Vieira são sempre de uma veracidade desconcertante. O texto parece ser de uma mulher como nós próprias, de alguém que sabe transmitir para o papel uma vida simples e verdadeira.
De repente, a despropósito, as lágrimas omeçaram a correr. Acho que foi no texto do Pai Natal, depois no dos amigos, na festa de fim de ano do Diário de Notícias, até no da camisola verde, que só poderia despertar um sorriso.
As lágrimas rolaram por muitos textos fora. Mesmo nas crónicas do JL, mesmo nas sugestões de leitura.
Acabei exausta e feliz. Como se chegasse a casa depois de um exercício revigorante.
Precisava tanto de chorar! De ter tempo para chorar.
As revistas não falam disto: alongam-se em artigos sobre o tempo de sorrir, de nos mimarmos, de nos divertirmos, de encher a nossa vida de actividades frenéticas e estonteantes...
Pois eu só precisava de tempo para estar, para olhar para as letras, para me sentir em casa e chorar.
Por vezes penso que o riso está sobrevalorizado. Desconfio de pessoas que sorriem muito, como se tivessem pintado um sorriso no rosto a despropósito, ou fossem surdas e não estivessem a acompanhar a conversa, ou fossem parvas, ou ignorantes, como aqueles todos que continuámos com os auscultadores sem som a ouvir a comunicação dos suecos, depois de ter terminado o turno da tradução simultânea naquele longínquo congresso internacional sobre cultura. Tenho pena das pessoas que soltam gargalhadas estridentes durante festas inteiras: não podem ser sérias. A sério, ninguém tem vontade de rir assim, todos os dias, as festas todas, ano após ano, que nos encontramos...
Também não tenho paciência para as pessoas que choramingam. Até o verbo parece um diminuitivo desgraçado de uma acção a sério: choramingar, mingar, minguar, diminuir, ficar pequenino ou sinsignificante, ou irritante, ou liliputiano agarrando-nos por um um tornozelo, montado no nosso sapato, choraminguando o nosso dia a dia...
Já chorar a sério é um exercício de respeito. Grossas lágrimas brotam do fundo de nós, sacodem o pó dos dias, limpam as alergias recorrentes. Porque choro assim? Não sei. Mas sabe-me a ritual de purificação. Como o chá de Hipiricão do Gerês depois dos excessos das festas, como os abdominais, tentando limpar a banhita teimosa de filhoses e batatas fritas, como afirmar que estou viva e me recomendo para lá do torpor dos dias cheios de pequeninas irritações, de sorrisos falsos e de mesuras, de revirar de olhos contidos no cruzar quotidiano com aqueles que partilham connosco títulos de que os achamos imerecedores. E que dores! São dores quotidianas, arrumadas em caixas insonorizadas, mas que afinal estão cá todas.
Este primeiro período lectivo foi extenuante! Centenas de crianças a que lecciono só uma vez por semana, dúzias de testes e trabalhos que me ocuparam as noites todas, para quase não ter tempo de exprimir nas reuniões a minha opinião, porque tínhamos de preencher o impresso A e agrelha B, não nos esquecermos do plano de recuperação, de rectificar os sumários, que a inspecção do ano anterior viu a nossa incompetência nos que se esqueceram de cortar a caneta o quadradinho das faltas nos dias de casa cheia. Como pode um professor ser tão incompetente - ainda por cima sabendo que está a ser avaliado! - mesmo inconsciente e não cumprir uma das suas obrigações primeiras para com o saber? Escrever o sumário, assinalar as faltas ou indicar a ausência delas. Ah! Sentimo-nos agora muito mais competentes! Agora que sei que é mais importante assinar o sumário que dar a aula, preencher o impresso que ouvir a criança, ou escrever num quadradinho a actividade que se fez, mesmo que não se tenha feito.
Tanta competência e convivência reprimida tinha de sair por algum lado. As minhas lágrimas grossas vinham escuras, como a água das torneiras que estão muitos dias por abrir. Precisava tanto de chorar. Precisava tanto de limpar, de saber que sou dona das minhas lágrimas, do meu silêncio, da minha força de existir. Assim, sozinha, num espaço sem obrigações, numa tarde sem impressos para preencher. Sozinha, com a emoção de estar sozinha, de poder ser eu, de não ter de fingir, de poder não cumprir, de me cumprir só a mim. A mim, dona do meu ser, da escolha dos livros com que quero chorar, das letras que quero ler, dos autores com quem me quero partilhar. Sem dar explicações. Sem ter explicações, nem para mim própria.
Ter um dia para existir assim, é de viver e chorar por mais.

4 comentários:

josé luís disse...

obrigado por este fabuloso texto.
não chorei porque não calhou.


(votos de um ano novo sem motivos de choro que não seja deste tipo)

Escrivaninha disse...

Muito obrigada.
Um excelente 2012 para si também.
Beijinhos

Escriva-ninha

Ninguém.pt disse...

Gostei. Da franqueza, da humanidade que ressuma do texto. Chorar, como rir, são exercícios de libertação se — e apenas se — exprimem o que nos vai na alma ou se os usamos como forma de não dar parte de fracos.

Quando são máscaras ou escadas para nos alcandorar onde desconfiamos que não chegamos apenas com a nossa própria cara — então, chorar ou rir são igualmente coisas tristes.

O meu horror às "fardas" há muito que me levou a chorar ou a rir quando me apetece, sem dar satisfações a ninguém. Isso inclui também não aceitar adiar, não deixar por dizer o que preciso de dizer, mudar de sítio se naquele estou mal.

Pois, mas isso tem custos: eis-me sem sítio, eis-me olhando para cima para encontrar os que sempre usaram as máscaras certas, os que não o merecendo nem se dignam olhar para baixo para me encontrar.

Saldo? Positivo, muito positivo! Sinto-me inteiro, sinto-me eu.

Como a entendo, Miss! E como gostaria de ter janelas de esperança para lhe instalar uma já aberta para um céu azul riscado pelos luminosos raios do sol nascente!

Como sou um optimista sem cura e acredito piamente que é nas nossas mãos que reside a caneta que escreve o destino, fico-me pela dúvida: se não formos nós a acender a chama da esperança, quem a acenderá por nós?

Obrigado, Miss, pelo desabafo. E desculpe o meu, sim?

Beijito.

Escrivaninha disse...

Oh, Mestre!
Só agora vi este comentário - e que tão belo ele é!
Ando um pouquinho irritada com o gmail porque ele insiste para eu instalar um Chrome e farta de cromos ando eu! Assim, por vezes não reparo num comentário novo.
Muito obrigada: aceito a intenção das janelas de esperança e das canetas que escrevem o destino como se elas tivessem mesmo sido entregues. E se calhar foram mesmo. Porque para nós existe o que existe para nós.

Beijito.