Será que as palavras ficam presas no tempo?
Terão as palavras alguma coisa a ver com a moda, efémera e volátil?
Evocações do passado também poderão ser palavras que, outrora, marcaram tanto o nosso quotidiano como o som do chiar do baloiço, o pregão da “língua da sogra” na praia ou o cheiro do cozido à portuguesa ao domingo?...
Procurar e (re)contextualizar palavras, embalarmo-nos nelas, divagar sobre elas, são alguns dos objectivos deste projecto.
Por puro prazer!
terça-feira, 30 de agosto de 2011
Rom-rom/rom-rom/rom-rom...
Difícil, nas férias, foi aguentar as saudades desta amiga!
Ai, que ternura! E o meu motorzinho está mesmo aqui, focinhito por cima do meu ombro, a ver o que escrevo e a manifestar o seu carinho (naquela forma simultanemente ruidosa e suave que só os felinos sabem). Vou partilhar com todos os donos de gatos que conheço. Beijito.
Os animais foram imperfeitos, compridos de rabo, tristes de cabeça. Pouco a pouco se foram compondo, fazendo-se paisagem, adquirindo pintas, graça, voo. O gato, só o gato apareceu completo e orgulhoso: nasceu completamente terminado, anda sozinho e sabe o que quer. O homem quer ser peixe e pássaro a serpente quisera ter asas, o cachorro é um leão desorientado, o engenheiro quer ser poeta, a mosca estuda para andorinha, o poeta trata de imitar a mosca, mas o gato quer ser só gato e todo gato é gato do bigode ao rabo, do pressentimento à ratazana viva, da noite até os seus olhos de ouro. Não há unidade como ele, não tem a lua nem a flor tal contextura: é uma coisa só como o sol ou o topázio, e a elástica linha em seu contorno firme e subtil é como a linha da proa de uma nave. Os seus olhos amarelos deixaram uma só ranhura para jogara as moedas da noite Oh pequeno imperador sem orbe, conquistador sem pátria mínimo tigre de salão, nupcial sultão do céu das telhas eróticas, o vento do amor na intempérie reclamas quando passas e pousas quatro pés delicados no solo, cheirando, desconfiando de todo o terrestre, porque tudo é imundo para o imaculado pé do gato. Oh fera independente da casa, arrogante vestígio da noite, preguiçoso, ginástico e alheio, profundíssimo gato, polícia secreta dos quartos, insígnia de um desaparecido veludo, certamente não há enigma na tua maneira, talvez não sejas mistério, todo o mundo sabe de ti e pertence ao habitante menos misterioso, talvez todos acreditem, todos se acreditem donos, proprietários, tios de gatos, companheiros, colegas, discípulos ou amigos do seu gato. Eu não. Eu não subscrevo. Eu não conheço o gato. Tudo sei, a vida e seu arquipélago, o mar e a cidade incalculável, a botânica, o gineceu com os seus extravios, o pôr e o menos da matemática, os funis vulcânicos do mundo, a casaca irreal do crocodilo, a bondade ignorada do bombeiro, o atavismo azul do sacerdote, mas não posso decifrar um gato. Minha razão resvalou na sua indiferença, os seus olhos têm números de ouro.
3 comentários:
O ronron do gatinho
O gato é uma maquininha
que a natureza inventou;
tem pêlo, bigode, unhas
e dentro tem um motor.
Mas um motor diferente
desses que tem nos bonecos
porque o motor do gato
não é um motor elétrico.
É um motor afetivo
que bate em seu coração
por isso faz ronron
para mostrar gratidão.
No passado se dizia
que esse ronron tão doce
era causa de alergia
pra quem sofria de tosse.
Tudo bobagem, despeito,
calúnias contra o bichinho:
esse ronron em seu peito
não é doença - é carinho.
Ferreira Gullar
Ai, que ternura!
E o meu motorzinho está mesmo aqui, focinhito por cima do meu ombro, a ver o que escrevo e a manifestar o seu carinho (naquela forma simultanemente ruidosa e suave que só os felinos sabem).
Vou partilhar com todos os donos de gatos que conheço.
Beijito.
Ode ao gato
Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, voo.
O gato,
só o gato
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.
Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa só
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e subtil é como
a linha da proa
de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogara as moedas da noite
Oh pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma
na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertence
ao habitante menos misterioso,
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.
Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com os seus extravios,
o pôr e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casaca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.
(Pablo Neruda)
Beijito, Miss.
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