"Frequentemente sentia a falta da vida lá fora. Do ruído, da agitação, do desafio constante que era tentar ensinar filosofia a jovens: a essência da filosofia.
A Ordem dava-lhe agora tudo o que precisava. O resguardo do mundo, na fase inicial de desorientação, salvou-o de um problema mais grave. A reclusão, a oração, mas sobretudo a existência de uma vida ritmada e sem muitas perguntas, permitiu-lhe a calma de voltar a acreditar que era possível colocar os pensamentos em ordem. De evitar um mal maior. Não queria ingressar no calvário dos anti-depressivos e das consultas a psicólogos e psiquiatras que muitos colegas relatavam. Queria acreditar que ainda era forte, que conseguiria, sozinho, recompor-se…
Pensava muitas vezes na forma como tudo acontecera. Na escalada de acontecimentos, de impactos negativos na vida pessoal e profissional que o tinham conduzido a um mal-estar constante, a um arrastar-se pelas tarefas do dia-a-dia. Sabia que não poderia encontrar um motivo único. Tinha sido sem dúvida um entrelaçar de diversos factores: o divórcio, a doença da mãe, a progressiva estupidificação que via no ensino, nas notícias, na política, no país…A incapacidade de se render ao recuo dos contextos que deveriam ser de cultura, de informação, de acção. O calvário da burocracia já não era compensado pelo prazer de leccionar. Assustava-o perceber que os jovens já surgiam formatados pelas novas ditaduras: da quantificação, da falsa objectividade, do facilitismo, da desculpabilização.
Queria escrever sobre isso, queria conseguir perceber – e, por vezes, a melhor forma era deixar fluir os pensamentos numa folha de papel – procurar analisar o alcance de tantas pequenas imbecilidades que juncaram o seu dia-a-dia até o conduzir ao desespero…Mas ainda não conseguia. Nunca antes de tentar reflectir o que tudo aquilo causara dentro de si próprio, de como, quando e porquê, sentira que ia quebrar. Talvez fosse mais fácil não procurar tantas respostas, aceitar, simplesmente, arrumar, seguir em frente, mas ele não era quem era sem a filosofia, a sua filosofia; e ela não o deixava parar de interrogar. Por vezes cria que a filosofia era a sua condenação, outras vezes acreditava que ela era a sua salvação. Fosse como fosse seria sempre o caminho: o caminho que o levara até ali e o caminho que o conduziria a qualquer outro lugar.
Hoje era um daqueles dias, em que estava assim, a meditar ou a divagar em silêncio, incapaz de se concentrar numa tarefa concreta, de terminar uma das muitas orações em que já tentara encontrar consolo e rumo.
Levantou-se, por fim. Não valia a pena continuar. Queria muito voltar a escrever!
Passou a mão pelas lombadas dos livros e dos cadernos, como quem faz uma festa no rosto de quem ama…
Reparou num papel que se insinuava entre dois volumes. Puxou-o, desdobrou-o e não conseguiu evitar um sorriso. A letra irregular devolveu-lhe a «gota de água» que ditou a decisão de «sair do mundo» para sobreviver. Assinado por um Tiago, estava a comunicação sobre a escolha do trabalho de Filosofia de 10º ano: O trabalho k vou fazer é sobre aquele grego: o Happy Curu "
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