domingo, 13 de março de 2011

Passagem

"Trovejava agora. O tempo tinha ensurdecido em cinzento com o findar da tarde. A luz das lâmpadas piscava, ameaçando uma escuridão total. As cordas de chuva nas janelas davam uma sensação de «scary moovie»: o cenário estava montado para uma cena de crime ou fantasmagoria.
Como se estivesse a observar-se a si mesma estranhou continuar calma. Dir-se-ia que antecipara aquele momento: o barulho, os clarões, a ausência do costumado medo; sabia que hoje não iria sentir medo.
Desde manhã que se sentia observadora de si mesma, interrogando(-se) sobre as razões dos seus actos: A mudança de visual, cabelo, roupa... e até as compras no supermercado apelavam a um lado criativo que não reconhecia. Algo de muito inquietante se passava desde manhã...
Arrumava agora, meticulosamente, os armários da cozinha, confundindo o barulho da chuva com a água que ia enchendo a banheira para o banho de espuma.
Sentia-se inquieta, por dentro, e agia, por fora, como se cumprisse um guião.Sentia-se protagonista de qualquer coisa...
A banheira estava quase cheia. Tropeçou o olhar nas velas coloridas que adornavam a casa de banho.
Acendeu várias à volta da banheira. Pequenas chamas dançando inseguras na borda de um caldeirão fumegante.
Observou a imagem do espelho: desfocada pelo vapor, poderia ser qualquer uma.
Agradou-lhe a perspectiva e foi deixando escorregar a roupa, observando as sombras no espelho e nas paredes. Sentia-se ruborizada. Talvez alguma vergonha por aquela actuação, talvez do calor do ambiente, talvez da taça de vinho que deixara quase vazia na cozinha...
A luz das lâmpadas foi-se com o último relâmpago.
Ao som do trovão, que fugia, deixou-se mergulhar, lentamente, na água, nos reflexos, no fumo, no mistério de toda aquela encenação.
No momento que que o seu corpo pousou sobre as brilhantes estrelas do mar, soube que a sua segunda vida tinha começado."

2 comentários:

Ninguém.pt disse...

Gostei, Miss. Pode continuar, está aprovada!


Mensagem a um desconhecido

Teu bom pensamento longínquo me emociona.
Tu, que apenas me leste,
acreditaste em mim, e me entendeste profundamente.

Isso me consola dos que me viram,
a quem mostrei toda a minha alma,
e continuaram ignorantes de tudo que sou,
como se nunca me tivessem encontrado.


Cecília Meireles

Escrever é mostrar a alma, quer se queira quer não. Mas só a mostra quem a tem...

Beijito.

Escrivaninha disse...

"Teu bom pensamento longínquo me emociona."
Beijito