sexta-feira, 29 de agosto de 2014

"Ela sabia que aquilo ia acontecer, mais cedo ou mais tarde.
Aquelas visitas regulares, insípidas, mas persistentes. Aquele enrolar das mãos por não saber o que dizer, aquele «estou aqui porque quero estar contigo»...
Parecia um namoro à moda antiga.
Ela questionava-se todos os dias porque o deixava entrar, estar, ter esperança.
Depois concluiu que talvez valesse a pena tentar. Afinal se todos os outros acasalavam ou pareciam loucos para o fazer, ter alguém devia ser encantador.
Mas é que não era.
«Não será a pessoas certa» questionava-se. «Mas isso existirá?». «Afinal de contas sempre pus defeitos em toda a gente, nunca vi vantagem em estar acompanhada...devo estar errada...com certeza não serão os outros todos a estar errados...»
«E ele é tão bom rapaz»; «E seria moço para te fazer feliz», «Se não lhe deres uma oportunidade nunca acontecerá»; E todos os outros argumentos que tinham o seu quê de verdade.
Ele perguntou um dia se poderia aparecer à noite e ela lá lhe disse que sim.
Abdicou de estar em calções ou em pijama e muito menos descalça, que o moço deveria vê-la composta...Com posta, cabeça e rabo, sentia-se ela ali, pescada na sua própria casa, sem estar à-vontade.
E chato....que ele era, coitado!
Foi quando começou a acrescentar o epíteto «coitado» aos seus pensamentos sobre ele que começou a ter dúvidas. Ou melhor, certezas. Dúvidas ela sempre tinha tido e foi do aproveitamento dessas dúvidas que nasceu a possibilidade daquele incómodo diário.
Naquele dia ele torceu mais as mãos que o costume e ela esfregou as suas (mentalmente) de contente. Ele ia decidir-se e aquilo ia poder ter um fim.
Ele lá murmurou a declaração, ou proposição, que ela nem soube bem o que aquilo era: era o pretexto para poderem ter uma conversa definitiva, foi assim que ela o recebeu.
- E o que é que tu tens para me oferecer? - ouviu-se dizer, regateira da praça, economista dos sentimentos e das relações.
- Eu. O que eu tenho para te oferecer é o que tu vês - ele, de olhos baixos, já desconfiado daquela reacção que não vinha nos romances
- E porque é que tu achas que vales a pena? - investiu ela, cruel
Ele não conseguiu responder. Talvez tenha pensado que não valia a pena (isso, ela só pensou dias depois). Virou as costas e desceu a rua sem olhar para trás, os ombros descaídos em sinal de derrota.
Ela fechou a porta triunfante quando ele chegou ao fim da rua. Descalçou-se. Sentiu o frio do mármore nas plantas dos pés. Tinha recuperado a sua liberdade!
Era impossível que os outros não vissem que era muito melhor estar sozinha.
Afinal o que é que os outros viam nos outros?
Decidiu que não valia a pena pensar nisso e que nessa noite ia dormir nua, esplêndida, sozinha...ou consigo mesma?"

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