sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A Coleccionadora

"Nunca tinha sido grande coleccionadora.
Herdara uma colecção de carteirinhas de fósforos do pai e uma colecção, muito incompleta, de selos da mãe. Pouco lhes acrescentara. Às vezes abria os álbuns e as caixas e olhava as espécies. Intrigava-a ter todas aquelas coisas ali, quietas, sem ser para usar...Mas, o que iria fazer com aquilo? Os quadros que herdara da tia Margarida passaram a decorar a sala da lareira, a roupa que tinha - alguma também herdada - usava-a, exibi-a, gozava-se dela, mas as colecções...não serviam para nada, era até uma pena ter aquilo tudo ali preso.
Naquele dia ele telefonou mais uma vez. Era um daqueles telefonemas que ela andava a evitar há algum tempo. Tinha até enviado uma mensagem a pedir que não lhe ligasse mais, que não lhe apetecia falar com ele. Mesmo assim ele ligara mais três ou quatro vezes que ela não atendeu e depois ligou de um telefone fixo, num dia já disperso, em que ela pensava tê-lo dissuadido.
Atendeu por pensar que poderia ser de alguma firma, de alguma coisa importante.
A voz dele era alegre, jovial, com um tom de triunfo: «Sabes que eu nunca desisto. Não vejo razões para não falares comigo. Não te fiz mal nenhum.»
Conversaram durante um bocado. Ela sabia que não adiantava recusar: assim a conversa transformar-se-ia em discussão e duraria o mesmo tempo. (Recordava tempos em que lhe desligou o telefone e as mensagens sucederam-se acusatórias, desagradáveis, até ela decidir atender outra vez).
Desta vez, enquanto conversava com ele, não se conseguiu concentrar.
Ele nem disfarçava que estava numa outra relação, que vivia já com outra mulher, mas insistia em manter aquela ligação, aqueles telefonemas periódicos, aquela verificação de que ela continuava ali, disponível, de certa maneira.
De repente sentiu-se um selo no álbum, uma caixa de fósforos na caixa grande de arrumação.
Ele estava apenas a verificar e contemplar a sua colecção. A sua colecção de pessoas.
Abria o álbum, certificava-se da sua posição, contemplava a sua beleza, eventualmente avaliava o seu valor. E fechava o álbum das coisas que se guardam e não se usam. Das coisas que se têm para, de certa forma, provar o nosso poder, reencontrar o nosso passado, manter um laço qualquer com um pedaço de nós mesmos.
Concluiu isto tudo enquanto respondia mecanicamente ao seu discurso egocêntrico, à torrente de palavras animadas que tinham como denominador comum a pessoa do seu autor: «Eu isto, eu aquilo...», mimava-o enquanto lhe respondia.
Mudou o telefone de lado para ficar com a mão direita livre.
Abriu o álbum, depois a caixa.
Terminou a conversa a pretexto de ter de continuar uma qualquer tarefa.
Depois do clic, riscou cada fósforo, queimando cada um dos selos. Nunca mais ninguém ia desinquietar aquelas espécies, para não as usar, para lhes provar a propriedade. 
Mortas, destruídas, em cinzas, as suas colecções eram enfim livres."

1 comentário:

Escrivaninha disse...

Esclarecimento: nenhum selo ou fósforo de colecção foi sacrificado ou de alguma forma danificado para a construção deste texto.