sexta-feira, 27 de julho de 2012

Registos

Tempo de férias é tempo de arrumações.
Final de ano letivo é tempo de selecionar e arrumar as pilhas de papeis que se acumulam, mesmo numa sociedade quase informatizada, em que os 'no natives' do mundo virtual cometem frequentemente o pecado de duplicar os registos.
Tudo tem de ser relido e avaliado: é importante? vale a pena ficar? em que categoria se arquiva? Ah, já não me lembrava disto! Oh, que raiva; daquela vez que não consegui fazer vingar a minha ideia...Ah, mais um registo que me emociona porque é só meu e revela a dedicação dos meus alunos. Ah...este trabalho não sou capaz de descartar...
Porque a tarefa é morosa e frequentemente penosa nem sempre lhe sou dedicada. Assim este ano tenho vários anos acumulados para avaliar e rasgar, arquivar ou uma qualquer outra solução.
A ideia de que talvez possa mudar de poiso, mesmo que não se concretize, obriga a uma seleção criteriosa do que deve ou não ser guardado...porque eventualmente transportado, pesado, e se inútil...
A ideia vale pelo exercício e pela renovação que tudo isto provoca.
Em termos de filosofia oriental é muito útil para que o chi flua pela casa e não fique estagnado.
Entre o ocidente e o oriente vou aproveitando para orientar melhor este escritório que sofre de uma overdose de papeis e de material de papelaria que, como me fascina muito, acabo por comprar em excesso. Talvez para o ano não necessite de novos dossiers, mas, conseguirei resistir? É sempre tão bom escolher as cores e as formas do novo ano letivo!
De vez em quando saltam do meio dos papeis sérios e profissionais registos pessoais avulsos: um texto que escrevi num tempo morto, uma fotografia tirada por amigos que me foi entregue num dia de trabalho. Cada um destes registos é criteriosamente avaliado, enquadrado no seu contexto e arrumado numa "pilha provisória" que, espera-se, dará origem a um arquivo definitivo.
Demoro-me a pensar na natureza destes registos e assumo por um bocado a visão do historiador (ou até mesmo do biógrafo ou do sociólogo) e concluo que a forma como fazemos - pelo menos como eu faço e guardo os registos - é quase bipolar: os textos são desabafos de momentos menos bons, por vezes quadros de uma negritude assustadora, as fotografias imobilizam sorrisos, reuniões sociais e momentos de lazer, felizes.
Recorrentemente penso no estúpido exemplo que um professor da Universidade nos dava numa cadeira do primeiro ano: se um extraterrestre chegasse à terra e encontrasse uma embalagem de OMO e uma fotografia de alguém sorridente com uns dentes muito brancos, concluiria que comíamos OMO para branquear os dentes. A função do exemplo foi cumprida: não nos esquecermos que a História é interpretação a partir de fontes, dos vestígios que foram deixados e dos apetrechos de que dispomos para os interpretar.
O que pensaria de mim quem abordasse os meus registos? Uma escrita triste e furiosa que não condiz com a felicidade emanada nos momentos registados visualmente...Pensaria que sou duas pessoas? Que sou desequilibrada? Ou pensaria que os registos mostram apenas parcelas de mim? E, se calhar, nenhuma completamente verdadeira...ou todas parcialmente verdade. Como se chega à verdade sobre uma pessoa por aquilo que ela nos deixou de si mesma? Depois de tanta seleção criteriosa...      
Que registos fazemos; que registos deixamos; que registos eliminamos...
Que registo fazemos de nós próprios?

1 comentário:

Ninguém.pt disse...


«[…] há impossibilidade de ser além do que se é — no entanto eu me ultrapasso mesmo sem o delírio, sou mais do que eu, quase normalmente — tenho um corpo e tudo que eu fizer é continuação de meu começo […], a única verdade é que vivo. Sinceramente, eu vivo. Quem sou? Bem, isso já é demais…»

Clarice Lispector


Beijito, Miss.