sábado, 2 de junho de 2012

Todos os dias desisto, todos os dias persisto

Os dias não são de alegria, nem de entusiasmo. Nem as noites...Todo o contexto é um absurdo de estupidez, desmotivação, deslocação dos verdadeiros centros de interesse...
Parece que está tudo errado!
O Ministro afinal mentiu? O que está no site do Ministério não coincide com o que foi anunciado...vem ou não um reforço de tempo (e importância, claro) para as ciências humanas e sociais?
A partir de Julho a minha escola fará parte do maior mega-agrupamento de escolas do país. (Como se escreve mega-agrupamento? Nem sei se a palavra é anterior ao acordo...)
O acordo entra ou não entra? Não tiveram tempo de discutir e decidir isso nos últimos vinte anos?
O ar está pesado; o céu cor de chumbo; doi-me o pulso direito, devo ter uma tendinite; os testes e trabalhos amontoam-se na secretária e destas avaliações dependem a passagem ou o chumbo (perdão, retenção...) de alguns alunos.
O desespero de ver que alguns não aprenderam nada, que outros desaprenderam...
Fim de ano...antecipação da tristeza de vê-los partir sem saber se voltam. Para as salas do nosso contentamento.
As aulas decorrem em ritmos de fim. A burocracia sufoca-nos. As reuniões tombam sobre nós como uma tempestade elétrica, que nos faz procurar abrigo, num contexto estafado em que mesmo os que costumam oferecer o ombro amigo estão também cansados e desmotivados.
Os dias sucedem-se com um sabor amargo, que não é aliviado pelos fins de semana atulhados de papeis e formalidades.
Por isso as aulas me sabem tão bem! Bebo-as sofregamente agora que vão ser suspensas para deixar na escola o deserto dos dias semgritos, brincadeiras e risos.
Era quinta-feira ao fim do dia. A aula deveria ser dedicada à apresentação dos trabalhos dos alunos que têm notas indecisas (não necessariamente negativas, mas de difícil decisão).
O power point é rei das apresentações e as salas devem ter um projetor e um écran prontos a mostrar as palavras e imagens colhidas na Internet a alinhadas ao sabor dos conhecimentos, empenho e gosto de cada dos alunos em avaliação.
"O écran não se segura!  Professora, não tem pega...O prego não é esse...Professora!"
Embora com vontade de suspender tudo por falta de condições, sufoco a revolta dentro do meu lema educativo de que se os nossos antepassados conseguiram evoluir com pedras e paus, nós somos capazes de dar a volta a qualquer situação: "Escolhemos dois jovens altos, que seguram o écran e decoram a apresentação."
Eles alinharam.
Os papeis foram então invertidos: eu, sentada ao fundo da sala, com um caderno de apontamentos, eles, senhores da situação, explicando, respondendo, captando a atenção dos colegas. Os dois rapazes sustentaram com elegância a branca tela, conferindo uma moldura humana, jovem e sorridente aos conteúdos apresentados.
Acaba o primeiro trabalho, entra em cena o segundo, tradicional na forma pedagógica de apresentação: uma pessoa a falar, apoiada nos seus conhecimentos.
Tinha-lhes dito que a aula seria um debate em torno dos conceitos apresentados nos trabalhos.
Vários foram os dedos no ar que secundaram as apresentações mostrando que a noção de debate está interiorizada. Sucedem-se as perguntas e as respostas. Anima-se a discussão. Entro na conversa fascinada com a pertinência das perguntas. Não aguento estar sentada. Já ocupei o tampo de uma mesa. Só então vejo um braço no ar que não compreendia a quem pertencia. Afinal era um dos "seguradores de écran" que se tinha sentado no chão, à espera de poder voltar a ser necessário. O outro tinha-se sentado no meu lugar. As cabeças rodavam para a frente e para trás para acompanhar o ritmo das perguntas e respostas que surgiam dos vários pontos da sala.
A conversa foi fluída. Todos estavam envolvidos. Eu esqueci-me que estava zangada e desmotivada. Bebia energia nas perguntas da T (aluna que tirou negativas bem feias) e que agora queria saber como os reis bárbaros aceitaram a autoridade do Papa. Outro lhe explicava que ainda hoje a Santa Sé dá ordens aos padres de cada país. E falamos do necessário acordo por causa da supressão dos feriados.
Uma das boas alunas quis explicar o que era o Império Romano do Oriente. E surge à conversa a multiculturalidade da Turquia, herdeira dos diferentes percursos históricos e culturais vividos no território.
"Crsitãos e católicos são sinónimos?"
"Não, não são. Há mais cristãos que católicos. Vocês vão estudar no 8º ano, a reforma protestante, as divisões dentro do Cristianismo. E dentro das outras religiões também há, embora eu não as saiba tão bem..."
E é o L. - que cumpriu serviço por mau comportamento durante o ano - que espicaça o outro: "Não tens aí o livro de Moral? Isso está lá tudo".
E o outro tinha o livro de Moral, que abre com o ar metódico e pomposo que o caraceriza, faz uma pausa e olha-me por cima dos óculos: "Posso?"
Estamos agora todos a vê-lo e ouvi-lo enquanto ele fala dos judeus e dos muçulmanos.
Voltamos aos cavaleiros da Idade Média e exploramos os conceitos de Guerra Santa e de Cruzada, pouco antes de tocar para nos lembrar que afinal estamos numa aula.
É sem pressa que esclarecemos ainda alguns pontos, enquanto nos levantamos e vamos arrumando o material, para preparar tudo para a outra aula, já a seguir ao intervalo.
Estou tonta de entusiasmo e cansada de responder a tantas perguntas sem uma sequência pre-definida...
Devo ter os olhos brilhantes e nesse momento acho que tudo vale a pena.
Lembrei-me agora disto tudo porque os escuteirinhos passaram por mim e cumprimentaram: "S'tora: já viu os testes?" Franzo a testa antes deles explodirem em gargalhadas: "Apanhada! (Eu não te disse que ela ia ficar a pensar?) Já recebemos os testes s'tora. Bom fim de semana!" E lá vão, já de costas, três dos participantes no debate de anteontem, integrados noutro grupo, conversando e rindo entre si, desconhecedores da energia que me transmitiram.

Sem comentários: