terça-feira, 12 de julho de 2011

SPM

A sigla que para o Nuno Crato designa a Sociedade Portuguesa de Matemática é a mesma que nomeia o Síndrome Pré-Menstrual e que penso que se aplica ao meu dia de hoje.
Doem-me os ossos, sobretudo os das mãos. Pegar num copo de água tornou-se difícil.
A bola que marca o início das costas logo abaixo do final do pescoço - agora sei que tenho de a tratar por "cervical" - voltou a inchar.
O céu está cinzento e ameaça não me secar a roupa, no único dia desta semana em que não vou à escola e estendi a roupa de manhã. (Não se aflijam, porém, os puristas da proletarização docente, pois trouxe vários relatórios para realizar em casa).
Há mais de um mês que deveria ter ido ao médico para poder fazer análises e verificar sobretudo os meus níveis de ferro, que, com uma vontade férrea, tinham voltado a descer há uns meses atrás.
Dizem-me que sou a 4ª pessoa e instalo-me na sala de espera em frente ao consultório, onde o doutor já atende o primeiro doente.
Na sala de espera maior, contígua, Fátima Lopes berra popularmente num qualquer programa da manhã. Eu tinha-a visto, num écran bem grande, com uma boa definição de imagem, quando cruzei o espaço em busca de sossego para ler o meu livro sobre lugares mágicos e míticos nas paisagens serranas portuguesas.
As pessoas comentam depreciativamente o tempo que o médico demora com o paciente. A conversa começa a irritar-me. Estamos ali todos porque ele é um bom médico, porque nos dá atenção. Mas, claro, que isso é irrelevante ou mesmo prejudicial quando se aplica aos outros...O egoísmo que grassa no espaço que deveria ser sossegado começa a irritar-me e a ofender-me. A mulher que está ao meu lado não participa na conversa, mas masca furiosamente pastilha elástica com a tenacidade da marcha de uma legião romana e isso começa a incomodar-me mesmo muito.
Levanta-se de um pulo quando o médico abre a porta para dar passagem a duas senhoras vestidas de preto, uma delas aparentando muita idade e o andar penoso ajudado por uma bengala. Abençoei mentalmente o médico por ainda ser daqueles que dá atenção a quem precisa. Claro que não estamos a falar de um centro de saúde, mas de um centro hospitalar particular e o doutor, já retirado da saúde pública, faz aquilo que acha justo e penso que é para isso que continua a dar consultas. Deus o abençoe, reitero.
Discretamente, um homem que se tinha mantido em pé, avança até ao doutor e explica que na farmácia não conseguem perceber como deve tomar o medicamento. O médico ri-se com gosto: "E se eu também não perceber a minha própria letra?" Fica com os olhos muito pequeninos quando se ri, acentuam-se as rugas e ganha um ar de avôzinho brincalhão. Indica a cadeira do consultório ao senhor. A mulher da pastilha elástica deixa-se cair pesadamente na cadeira da sala de espera mais próxima da porta do consultório.
"Deixe lá ver, então..." o médico dispõe-se a resolver o problema que ele próprio criou ao doente.
"Assim é fácil", resmunga a mulher perto de mim, com uns papéis do seguro impacientemente abertos no colo. Acompanha as palavras de um movimento de ombros na minha direcção que pretenderá, certamente, granjear a minha solidariedade para o egoísmo dela.
"É só para resolver um problema, não é uma consulta", respondo-lhe, tentando chamá-la à razão.
"Pois, mas nós estamos aqui."
"Estamos aqui porque precisamos de estar. Eu trouxe um livro, porque sei que tenho de esperar. Mas a melhor recompensa é ele atender-me com tempo quando chegar a minha vez."
A mulher abriu a boca para começar a defender-se e eu dei-me conta que estava a ser professora de sala de espera.
"Se fosse consigo não gostava que ele lhe resolvesse o problema da receita sem ter que esperar muito?"
"Se fosse comigo...sim. Se pensarmos assim..." reconhecia contrariada.
"Mas é assim que temos de pensar. Então não queremos para os outros o que queremos para nós próprios?" insistia eu, armada em catequista.
"Pois, acho que sim. Vistas assim as coisas..." franziu as sobrancelhas e olhou-me directamente nos olhos. Toda a sua expressão podia ser traduzida em "Altiva de merda!"
Agradeci-lhe mentalmente. Decidi, há tempos, assumir-me como definitivamente altiva. Não tenho, não quero, não posso ser obrigada a confundir-me com toda a gente. Toda a gente é muita gente e parte dela não me interessa nada.
Voltei ao meu livro, no momento em que o senhor saía e a mascadora de pastilha aterrava na cadeira do consultório. A porta fechou-se de novo. Depois de matar qualquer tentativa de diálogo com afinidade tinha caminho aberto para recomeçar a leitura.
Chegou uma senhora. Olhou para os rapazes que esperavam nas cadeiras e perguntou "A última pessoa é esta senhora?"
Um dos rapazes respondeu: "Terá que lhe perguntar a ela."
Ela olhou desconfiada para mim, que já tinha levantado os olhos do livro. "É?..."
"Não sei" respondi "Quem controla isso é o médico e a secretaria. Eu só tenho de esperar que me chamem pelo nome."
"Mas...eu queria saber..."
"Precisa de se ausentar?"
"Não, mas quero saber qual é a ordem"
"Talvez na secretaria..."
A mulher virou-me as costas em direcção à saída e eu pensei "Isto hoje está a correr bem..."
Deveria querer saber a quem tinha de se colar para não deixar passar ninguém à frente, mas não somos nós que controlamos isso. Desconfio sempre das pessoas que têm muito medo de ser ultrapassadas. Será que é prática sua desrespeitarem os outros?
Recordo a cena de ontem no Intermarché. Quando a caixa abriu e fomos convidados a passar, pela mesma ordem, para a nova caixa, dois homens meteram-se à minha frente. Refilei. Alto e bom som. Não era justo. A empregada fez que não ouviu e foi atendendo os indivíduos. Um deles devia ter alguma consciência cívica e ficou incomodado com o meu olhar fixo e os cantos da boca dobrados em desagrado. Disse qualquer coisa ao outro, num tom sussurrado e com ar incomodado. Que se agravou, quando o outro atirou bem alto "Eu quero que ela se vá foder!"
Ninguém fez absolutamente nada. A funcionária continuou a registar as compras e eu fiquei a remoer a história.
Devia ter reclamado da funcionária.
Dizem-me que tenho mau feitio, que reclamo muito, mas estou de consciência tranquila, não passo à frente de ninguém, nem vivo em ânsias com medo dos outros.
Finalmente o médico chama-me. Começa sempre por me perguntar o que ando a ler. Por isso também levei aquele livro que sei que trata também o seu amado Alentejo. Dois dedos de prosa sobre as imagens do livro e depois então as análises, os exames. os medicamentos. Voltei a abençoa-lo mentalmente antes de sair. Aqui está uma pessoa que sabe que da conversa inteligente também depende a saúde!
Desço a rua e entro no café com ar condicionado e música ambiente. É caro, eu sei. Dizem que o dono do café é elitista porque faz sentir mal as pessoas que vão para lá conversar muito alto ou com crianças irrequietas. Agradeço sempre por ele o elogio, quando me vêm com esta conversa. Ainda bem que ele é elitista e selectivo, porque eu, que também sou, sinto-me muito bem naquele espaço depurado. Onde voltei a ter o gosto de escrever à mão, que o dono proibiu os computadores e eu, depois de ouvidas as suas razões (que gentilmente me forneceu quando o questionei) aceitei de bem grado.
Tranquila agora, sentindo-me no meu território, penso na forma como me tenho sentido nestes últimos dias. Espero que tudo isto se deva ao SPM, porque se se deve mesmo à qualidade das pessoas com que me vou cruzando é muito mais grave.    

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