quinta-feira, 2 de abril de 2020

Infausto

Terminei o 3º volume das Histórias das Mil e Uma Noites.
Achei este volume um pouco aborrecido. A última história era uma desgraceira de fazer chorar as pedrinhas da calçada e looonnngaaa.
Mas enfim, sobretudo quando um livro tem continuação, eu sou uma leitora estóica, disciplinada, acreditando que melhores páginas virão.
Concentrei-me assim em pormenores, à medida que avançava sobre as páginas de uma história desinteressante. Aí acabei por concentrar-me na vincada ideia de desigualdade que passa em todas as histórias que fizeram parte deste manancial de narrativas. Pelo menos até esta altura da minha leitura: a obra completa está, nesta edição do jornal Expresso, dividida em 8 pequenos volumes. Todos os personagens são escalonados conforme a sua dignidade (dignidade atribuída por nascimento ou pela preferência de alguém muito importante) e mesmo os escravos são diferentes entre si devido ao lugar de preferência que ocupam para com o seu amo ou ama. Aliás esta palavra "amo", no sentido de senhor, também sempre me soa a histórias do maravilhoso, como o Gato das Botas: o meu amo, o Marquês de Carabás!
Já quase no fim da narrativa impõe-se-me esta palavra: infausto. Muito bem aplicada devido ao destino infelicíssimo dos dois amantes e de muitos dos que com eles privavam, esta palavra soou-me a novidade. Rebusquei na memória. Não. Nunca tinha visto esta palavra. Fausto, sim. Como descritivo de ambientes fantásticos, como título de obra e como nome próprio. Mas nunca me tinha ocorrido que existiria a sua negação.
Lá fui ao palavrório de serviço e os sinónimos são: não fausto, infeliz, funesto.
Funesto, sim, descreveria bem todo o destino dos amantes. Seria o que eu escolheria do léxico que possuía. E também para descrever todo aquele ambiente social de hierarquias, medos e crenças de uma dignidade maior atribuída aos bem nascidos, que se conhece mesmo quando a tentam disfarçar. É de facto a negação do mundo que conheço e advogo: cada ser se distingue por aquilo que constrói a partir das suas condições específicas. Mas - acredito eu - nascemos todos iguais. Na minha opinião (que muito tenho discutido com alguns que advogam a monarquia como sistema político) ninguém é mais importante que outro quando nasce.E também quero acreditar que todos somos livres. Embora aí já coloque algumas reticências por aquilo que vou vendo e conhecendo. Muitos não somos livres: pelo contexto socioeconómico e pelas amarras que outros nos constroem por vezes, demasiadas vezes. Quero no entanto acreditar que, potencialmente, todos somos livres, ou seja acredito que todos carregamos em nós a possibilidade da acção rumo à liberdade. [Isto não me saiu muito bem: tenho de trabalhar melhor esta ideia].
Reparo agora que também o computador não reconhece a palavra infausto. Já aprendemos ambos hoje qualquer coisa.

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