sábado, 14 de setembro de 2013

Cá por casa

as gatas ainda brincam com as etiquetas que atestam a viagem, penduradas nas malas que ocupam um dos sofás da sala, com as "lembranças" ainda por dividir, decidir e entregar.
A vida vai voltando ao normal.
O ritmo de lhes dar comida de manhã e à noite, voltar a fazer compras, ir preenchendo a agenda com os procedimentos pedagoburocráticos, alguns testes e anotações várias que a catadupa de assuntos que marca o início do ano letivo perturba a memória, mesmo quando metódica e em forma.
É necessário hierarquizar os assuntos. E arrumar expectativas e esperanças para tempos mais oportunos.
Hoje foi um dia especial para isso.
Estreei o top pintado à mão que comprei em Paraty. Paraty onde aspirava o ar bem fundo para ver se absorvia a genialidade que por ali deve pairar desde que, há vários anos, ali se realiza uma festa literária de renome. Leio-a, vejo-a (e invejo-a, confesso) na Revista Ler. Não posso lá estar na altura certa, que um dos espartilhos da minha profissão é a obrigatoriedade de férias no Verão. Quando a oportunidade da viagem surgiu foi o nome de Paraty que se me impôs.
A vila histórica é linda!
À laia de consolação havia uma festa de música que enchia as ruas de ritmos, risos e artesanato a enfiar-se-nos pelo desejo dentro, tentando a generosa vontade de viajante de trazer consigo um pedaço da viagem.
Cores, tons, sons, cheiros. Viajar é toda essa vertigem de sentidos. E realizar sonhos. E ser feliz. E estar ali. E desfrutar.
O mar era uma edição de luxo das páginas de A Volta ao Mundo. O sol uma carícia irreal.
- Portuguesas? O meu avô também veio de lá. Foram muitos dias de viagem. Mas ele queria ter voltado.
E o sorriso tinha um ar de família.
- De onde são? Esse\sotaque de que zona é?
- Ah, Portugal! Eu quero muito visitar.
O carinho é muito, os sorrisos sinceros, os abraços são longos, as conversas fluem, com as diferenças que o oceano não lavou completamente.
E era uma felicidade só!
Mas eu queria falar de hoje.
Mas foi o top de Paraty e eu já a fugir de recuo para as férias, que poderiam ter sido mais longas...
Hoje, dizia eu, a tarde fez-se de literatura e pintura, tudo exposto pelas ruas de Leiria, com direito a visita guiada à Rota do Crime do Padre Amaro.
As telas - seriam telões no Brasil - ocupam em sequência vários lugares da cidade. Aqui e ali irrompem com apontamentos dramatizados os membros do grupo de teatro que nos assustam, nos agitam, nos fazem rir.
As conversas paralelas ou oblíquas vão-se ouvindo. A determinada altura estamos todos a evocar os quadros de Paula Rego e a notar a evolução posterior da pintora em causa - uma luso-francesa que trabalhou anos no projeto - cuja última tela se distingue das outras no estilo, na expressividade.
Penso numa certa cultura artística que afinal todos vamos tendo. Penso na imagem de um artista. Penso no cruzamento das artes: o livro interpretado em telas cujas legendas são as citações da obra literária.
A passagem de Eça pela administração do concelho foi o pretexto para a organização da rota a partir de uma obra explicitamente situada em diversos locais da cidade.
Ler uma cidade. Cruzar patrimónios. Escrever. Ficar na História. Estar lá para ser lido e questionado tantos anos depois.
"Em 1872 estabeleceu-se a Comuna de Paris. A primeira experiência de uma república popular, socialista", foi qualquer coisa assim que o Professor disse.
Antes falara o Presidente da Câmara, recandidato nas próximas autárquicas.
Pensei na carreira política e diplomática de Eça, navegando no seio de uma sociedade hipócrita que desvendava de forma crítica e da qual participava de forma consciente.
Mudámos alguma coisa?
Se calhar não.
Saudades de lá. Do outro mundo da Língua Portuguesa. De uma rota dos nossos avós bifurcada por uma viagem de fuga, não, retirada estratégica, não, ultimamente enfatiza-se a inteligência da derrota infligida a Napoleão, cujas tropas ficaram literalmente a ver navios.
E o povo, senhores?
Espoliado por franceses e ingleses mirava o mar com amor e raiva, sabendo que lhes sugara a liderança e a esperança de riqueza.
Sacrifícios necessários.
Ontem, como hoje. Lá, como cá.
A vida vai voltando ao normal depois do turbilhão da viagem, da emoção do reencontro com um passado português que nos foi subtraído por imperativos politico-económicos.
Como seria se fôssemos todos índios?
Como seria se tivéssemos nascido do outro lado do Atlântico? Se fôssemos negros? Se tivéssemos sido feito escravos, forçados a trabalhar num continente distante?
Como seria se não tivesse sido como foi?
Se tivesse sido ao contrário?
A viagem agita-nos por dentro, muito depois de estarmos a cumprir horários, a desenvolver rotinas. A viagem viaja-nos para sempre.
Na realidade, acho que nunca recuperamos de uma viagem, felizmente.
A viagem agita-nos para sempre. A viagem muda-nos, molda-nos, rapta-nos para sermos também o outro que conhecemos.
Diz o mundo "Nunca mais serás o mesmo" porque na realidade serás tu e os outros a partir dessa viagem que é sobretudo interior, para o passado, para a História, para fora de nós porque dentro de nós.
Cá por casa viaja-se na saudade, no sonho, na inquietação de querermos ser todos os que somos sobretudo a partir de agora. Da viagem que terminou, mas nunca mais terminará.
É agora uma tatuagem permanente, mesmo estando eu aqui por casa.

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