domingo, 23 de setembro de 2012

M

E perante os tecidos para escolher, levantei os olhos para ele. Pareceu estupfacto. Como eu esperasse uma resposta disparou: tu é que és mulher!
Empertiguei-me toda de raiva. Que tinha o ser mulher a ver com a coisa? Acaso vínhamos equipadas com um curso de decoração?
A discussão seria muito desagradável na loja e havia uma decisão a ser tomada. Pensei rapidamente: Vale a pena entrares neste "bate-boca"? Ele é nitidamente preconceituoso, mas está a dar-te a primazia da escolha o que te dá legitimidade para qualquer coisa...
Olhei-o ainda de soslaio: parecia hesitante, como se não compreendesse alguma coisa; provavelmente porque é que eu queria a sua opinião.
Decidi rapidamente e nem olhei mais para ele. A situação estava resolvida.
Eu estava incomodada. Apetecia-me explodir, mas nem sabia bem com quê. A sensação que eu tinha é que ele não ia perceber a minha irritação. E nem eu percebia porque estava tão irritada assim.
Agarrámos os sacos. Despedidas feitas. À porta da loja ele espera que eu passe primeiro.
E então eu percebi: é todo um pacote de preconceitos, de ideias feitas, de tratamento preferencial! Preferencial?
Entregámos tudo no escritório à hora combinada. Os outros colegas dariam forma aos cortinados, toalhas, guardanapos e outros acessórios para a festa temática. Nós tínhamos sido apenas "escalados" para a compra dos tecidos, outros o foram para as louças, outros ficaram encarregues da distribuição das mesas, outros da confeção do menu, outros do correto e pronto abastecimento de todos durante a festa, outros da receção e segurança.
Estava tudo certo. Porque estava eu então incomodada? Até tinha ficado com uma função que me agradava. Tecidos entregues não tinha que me preocupar mais com o assunto e não pregaria um alfinete ou sujaria as mãos na massa e no dia da festa podia deambular fresca e comunicativa como eu gostava.
Mas porque é que ele não tinha dado uma opinião? Então servia para quê? Para carregar os sacos? Isso também eu podia fazer. Para me acompanhar? A irritação subia de tom. Para legitimar as minhas escolhas?
Não sabia bem o que me incomodava...
Talvez o facto de me ter sabido bem o seu ato cavalheiro ao dar-me passagem na porta da loja...
O que me incomodava era que eu queria uma parte da imagem de Mulher que ele me oferecia...Mas estão porque fiquei agredida com aquele "tu é que és Mulher!"?
De quem era o preconceito afinal?
Será que na minha cabeça os papeis estavam mesmo referenciados como iguais?
Fiquei confusa e baralhada.
A noite foi carregada de sonhos mais confusos do que conseguia lembrar-me no dia seguinte. Pelos flashes que me vinham à memória poderia concluir - se o quisesse, se o conseguisse admitir - que o que me  incomodava em tudo aquilo era o facto de não lhe ter respondido... porque me congratulava por ele ter assinalado com letra maiúscula que eu era Mulher.
Que disparate! Como se podia dizer, face a um discurso oral, que ele usara maiúsculas? Tudo isto não passava de um disparate pegado. Porque não lhe tinha respondido logo então? Como faria a qualquer outro gajo?
Porque afinal de contas não deixava de ser uma satisfação que ele tivesse notado (e o tivesse dito em voz alta)  que eu era uma mulher, com M maiúsculo, com atributos femininos bem marcados. Bolas! Porque eu já tinha reparado que ele era um homem com H maiúsculo, porque pensava muitas vezes nele, porque queria que ele reparasse em mim e não queria espantá-lo. Pronto, já disse!
O que me incomodava era o facto de me sentir atraída por ele. De ter calado a discussão na garganta "para não espantar a caça". De me sentir vulgar. De me sentir algo animal. De me sentir como há muito tempo não me sentia.
E de me sentir assustada.
Defendia-me antes de tempo daquele M de Mesa posta, de Mãe, de Mulher dito com voz simultaneamente doce e possessiva; de Minha...
Defendia-me de ter sentido qualquer coisa naquela frase, naquele entregar-me os assuntos, naquele confiar em mim, ou dividir as tarefas comigo, naquele estarmos assim: essa é a tua função, poque eu quero que seja, porque a minha será outra: está tudo certo entre nós. Existe um nós...
De quem era o preconceito? Porquê a necessidade de defesa se ninguém me tinha atacado?
O que é que se estava a passar comigo?
Afinal não iria à festa tão descontraída como queria, como pensava que iria. Se ele me atribuía o M maiúsculo gostaria de olhar para uma Mulher bem vestida. Que fazer? Seria capaz?
O M afinal era de Medo, de Muito Medo.

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