Será que as palavras ficam presas no tempo?
Terão as palavras alguma coisa a ver com a moda, efémera e volátil?
Evocações do passado também poderão ser palavras que, outrora, marcaram tanto o nosso quotidiano como o som do chiar do baloiço, o pregão da “língua da sogra” na praia ou o cheiro do cozido à portuguesa ao domingo?...
Procurar e (re)contextualizar palavras, embalarmo-nos nelas, divagar sobre elas, são alguns dos objectivos deste projecto.
Por puro prazer!
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
Guião
Mas porque é que as coisas, na vida real, não acontecem tão depressa (e tão bem) como nos últimos episódios das telenovelas?
Deve ser um problema da equipa de guinistas...Mas também é bom pensar que os últimos episódios ainda estão longe!
POEMA ACTO III O actor acende a boca. Depois os cabelos. Finge as suas caras nas poças interiores. O actor põe e tira a cabeça de búfalo. De veado. De rinoceronte. Põe flores nos cornos. Ninguém ama tão desalmadamente como o actor. O actor acende os pés e as mãos. Fala devagar. Parece que se difunde aos bocados. Bocado estrela. Bocado janela para fora Outro bocado gruta para dentro. O actor toma as coisas para deitar fogo ao pequeno talento humano. O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente na noite, é o actor, com uma voz pura monotonamente batida pela solidão universal. O espantoso actor que tira e coloca e retira o adjectivo da coisa, a subtileza da forma, e precipita a verdade. De um lado extrai a maçã com sua divagação de maçã. Fabrica peixes mergulhados na própria labareda de peixes. Porque o actor está como a maçã. O actor é um peixe.
Sorri assim o actor contra a face de Deus. Ornamenta Deus com simplicidades silvestres. O actor que subtrai Deus de Deus, e dá velocidade aos lugares aéreos. Porque o actor é uma astronave que atravessa a distância de Deus. Embrulha. Desvela. O actor diz uma palavra inaudível. Reduz a humidade e o calor da terra à confusão dessa palavra. Recita o livro. Amplifica o livro. O actor acende o livro. Levita pelos campos como a dura água do dia. O actor é tremendo. Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor. Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou de um substantivo. E o substantivo retorna e gira, e o actor é um adjectivo. É um nome que provém ultimamente do Nome. Nome que se murmura em si, e agita, e enlouquece. O actor é o grande Nome cheio de holofotes. O nome que cega. Que sangra. Que é o sangue. Assim o actor levanta o corpo, enche o corpo com melodia. Corpo que treme de melodia. Ninguém ama tão corporalmente como o actor. Como o corpo do actor. Porque o talento é transformação. O actor transforma a própria acção da transformação. Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se. O actor cresce no seu acto. Faz crescer o acto. O actor actifica-se. É enorme o actor com sua ossada de base, com suas tantas janelas, as ruas - o actor com a emotiva publicidade. Ninguém ama tão publicamente como o actor. Como o secreto actor. Em estado de graça. Em compacto estado de pureza. O actor ama em acção de estrela. Acção de mímica. O actor é um tenebroso recolhimento de onde brota a pantomina. O actor vê aparecer a manhã sobre a cama. Vê a cobra entre as pernas. O actor vê fulminantemente como é puro. Ninguém ama o teatro essencial como o actor. Como a essência do amor do actor. O teatro geral.
O actor em estado geral de graça.
Herberto Hélder
Como dizia Chaplin, a vida é uma peça que representamos sem ensaio nem repetições — mas também sem guião e com muita margem de manobra nas deixas e nos actos.
2 comentários:
POEMA ACTO III
O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma, e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.
O actor em estado geral de graça.
Herberto Hélder
Como dizia Chaplin, a vida é uma peça que representamos sem ensaio nem repetições — mas também sem guião e com muita margem de manobra nas deixas e nos actos.
Beijito, Miss.
Vi agora que me enganei a escrever "guionistas". Bem feita! Eles também se enganaram em algumas das deixas que me deixam dizer e ouvir.
Beijito, Mestre. Que belo poema!
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