sábado, 11 de agosto de 2012

Praia Em Segunda Mão

"Agora dava-lhe para ficar assim...triste, a sentir-se sozinha...sem razão nenhuma.
Não queria admitir, mas tudo isto começara desde que soubera que o João se divorciara. O João era um «rapaz da sua idade» que trabalhava há anos no escritório em frente ao seu. Sempre o achara simpático e «bem apessoado» desde que ele começara a frequentar o mesmo elevador que ela. Mas - a sua ética era sem dúvida essa - o João era casado. Uma ou outra vez tinha-o visto a reunir-se à esposa perto do prédio dos escritórios. Não lhe parecia mal...Tinha uns longos cabelos escuros que exibia abanando com um ar um bocado 'coquette'. Nunca tinha pensado muito sobre a questão. Mas o certo é que quando o encontrava no elevador, nos corredores ou no self-service ali perto não deixava de pensar que a sua presença embelezara o espaço e acrescentara qualidade de vida a quem por ali trabalhava; a ela, pelo menos.
Um dia o João começou a andar desleixado, mal arranjado, olheirento, nervoso. Os «bons-dias» eram mais curtos e formais que o normal e ela accionou um estúpido instinto de proteção que dormia lá dentro, assim, sem ela saber e que voltou a ligar as luzes todas da sua vida.
Ele acabou por conversar um pouco com ela e foi assim que soube que, de facto, o rapaz atravessava uma crise e que o casamento estava por um fio. "Felizmente não temos filhos - murmurou ele como quem faz o inventário dos danos e perdas após uma catástrofe e procura consolar-se com o que não foi destruido." Mas o que é certo é que ele devia gostar muito dela, ou da vida de casado e que não se recuperou facilmente.
Voltou a andar alinhadinho, mas perdeu o brilho. Até o seu perfume matinal - que ela gostav tanto de absorver discretamente no elevador - parecia ter ficado menos fresco, embora fosse o mesmo.
Uma vez ou outra tomavam café juntos, unidos na solidariedade de quem precisa conversar um pouco, mas mais nada para além disso.
Claro que quando ela o «viu» no Facebook não resistiu e pediu-lhe amizade. E ele aceitou, naturalmente.
Não conversavam, mas ela colocava prontamente 'likes' em todas as suas fotos e comentários e de vez em quando recebia também uns de volta.
Assim foi nesta tarde de domingo ensolarada em que ela se levantou do sofá para consultar mais uma vez a página do Face e encontrou uma foto linda de uma praia ali perto que ele acabara de partilhar a partir de um amigo que recolhia a casa depois do sol. "Tu e mais 2 pessoas gostam disto" adicionou o Face depois de digerir o seu 'like'.
Foi surpreendida pelo barulho da chave na porta. Era o filho que voltava da praia. "Estou cheio de sal, mãe - justificou, enquanto evitava o beijo da mãe"; "E de areia também - quase gritou ela - Livra-te de pôr os pés na carpete da sala!"
"Velha rabujenta - acusou ele em tom carinhoso - Toma lá uma bola com creme que te trago. Mas...só ta dou se me prometeres que a próxima vais comer lá na praia. Que coisa essa de ficares aqui! Se não gostas de areia podes ficar na esplanada. Estava cheia de velhos como tu."
O rapaz desapareceu rapidamente na casa de banho e deixou-a com a bola na mão. Desembrulhou-a, deu a primeira dentada. Hum! Ele tinha razão. Que estava ela a fazer em casa? À espera de quê? Sentou-se ao computador e acrescentou mais uns 'likes' em fotos da praia emprestada que o João continuava a 'postar'."

2 comentários:

Ninguém.pt disse...


CONSOLO NA PRAIA


Vamos, não chores
A infância está perdida
Mas a vida não se perdeu

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras
Em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
Precipitar-te de vez nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.


Carlos Drummond de Andrade

O seu texto está muito bom, como de costume (não sei se já me foi levantada a interdição de o dizer...).

Beijito, Miss.

Escrivaninha disse...

Obrigada.
Não me lembro da providência cautelar do elogio, deve ter sido fruto de algum desaguisado (palavra de que gosto muito) e que já certamente passou.

Beijito Mestre. Boa semana.