segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A Páginas Tantas

"Já ninguém sabia há quanto tempo ele "vivia" dentro de livros. Usava sempre um livro à frente do rosto, como os atores gregos usavam a sua máscara.
Os pais tentaram alertar para aquele comportamento esquisito do filho, certamente fruto de uma qualquer perturbação psicológica, mas a mulher e o filho não parecerem muito sensíveis à necessidade de agir. E as coisas foram continuando.
Ele próprio já não se questionava muito sobre isso. Lembrava-se vagamente que começara a sentir-se aflito com a quantidade de informação que achava que devia abosorver e como se sentia frequentemente pensando que falar com as pessoas era uma perda de tempo. Deve ter-se tornado um sentimento permanente e concentrou-se totalmente em ler, ler tudo o que podia. Lia a andar, a comer e só não lia a dormir porque não podia, mas tinha a certeza que esse tempo era utilizado para organizar informação na sua cabeça.
Devia ter começado a falar sozinho, melhor, com o livro que lhe servia de máscara em cada dia, mesmo sem se aperceber. Ou talvez fosse a primeira vez...O que é certo é que naquele dia, enquanto comia (e lia, claro) lhe saiu a interrogação:
- Será que intelectual de esquerda é uma redundância?
- O que é isso, de esquerda? - perguntou desinteressado o filho
- O que é redundância? - perguntou áspera a mulher
Retirou por momentos o livro da frente do rosto e contemplou os seus interlocutores. Encarou dois rostos incomodados, como se o culpassem de ter saído do seu mundo.
Recolocou a máscara no rosto e utilizou mais uma garfada do prato que estava quase cheio à sua frente."

2 comentários:

Ninguém.pt disse...

Mais um texto bem bom, Miss. Sei o que é andar sempre dentro dos livros — houve um tempo em que todo o tempo era tempo de ler...


LIVRO


Livro
um amigo
para falar comigo
um navio
para viajar
um jardim
para brincar
uma escola
para levar
debaixo do braço.
Livro
um abraço
para além do tempo
e do espaço.


Luísa Ducla Soares

Beijito, Miss.

Escrivaninha disse...

Mas espero que quando tirava (ou tira) os olhos do livro encontre uns rostos mais simpáticos que os da nossa pobre personagem.
Beijito, Mestre.