domingo, 1 de fevereiro de 2015

Leituras

Quando tenho mais que fazer é quando me apetece mais ler. Depois fico enrolada em sentimentos de culpa pelo tempo que estou a ler um romance em vez de trabalhar a sério nas tarefas obrigatórias, por dever de ofício ou por compromissos que voluntariamente assumi, mas que depois me espartilham o tempo, as ideias e a paciência. Por outro lado, assim a leitura sabe melhor. É quase excitante as fugas que faço a mim mesma para ler um pouco, quase escondida, culpada, mas saboreando cada palavra.
Mas é sempre assim: quando o trabalho aperta preciso de ler outras letras, outras palavras não marcadas pelo rigor da História, pela mestria da Investigação Científica. Preciso de ler palavras livres, para me recordar da liberdade que perdi e para me dar esperança na sua recuperação no final de cada uma das tarefas que agora me limitam o tempo.
E assim foi com o romance anterior. Esse, comprado em desespero de causa, fruto da privação de palavras livres autoimposta no final das férias. É sempre assim. Despeço-me da "leitura recreativa" no final de Agosto ou início de Setembro, prometendo a mim mesma só a retomar em tempos mais livres e, durante todo o 1º período letivo, dedico o tempo livre à televisão: escolho uma ou duas novelas e uma ou duas séries. Mas...depois...a privação da palavra escrita livre começa a gritar dentro de mim e acabo, por alturas do Natal, por me dirigir à livraria aqui próxima e comprar um "romance de limpeza": qualquer coisa light, como Nora Roberts ou Sveva qualquer coisa, daquelas campeãs de venda de romances cor de rosa, valor seguro de palavras simples, tramas previsíveis e finais 100% felizes e apaziguadores. E pronto. Aquilo funciona como a antiga "cassete de limpeza" dos gravadores. É necessário ao correto funcionamento do mecanismo, mas não lhe acrescenta nada. Equilibra, vá.
O ritmo das palavras que vão desenrolando uma história que me acalma, por saber a chegada segura, devolvem-me a calma de ler e apuram-me o sentido, a necessidade de palavras mais densas, de tramas um pouco mais inquietantes, de reflexões um pouco mais elaboradas que "o amor é que nos salva" ou qualquer coisa assim.
Dirijo-me então a uma grande livraria. Reservo várias horas para essa tarefa. Deambulo por entre as estantes e os géneros literários, abro livros, leio pedaços, avalio palavras, ritmos e tons, e tipos de letra também, que há aqueles livros que nos afastam pelo aspeto: da capa, da letra, do tamanho, do espaçamento entre as letras, de ausência de margens nas páginas...
Desta vez comecei por procurar Daniel Silva, um autor que já li e gostei, mas queria um romance que se afastasse do seu heroi de muitos livros: o restaurador de arte Gabriel Allon, Dos policiais, muitos retomam o tema do Código Da Vinci e confesso que já li a minha parte disso...
De repente uma autora espanhola, bem encadernada, com um tamanho razoável e um tipo de letra agradável chama-me a atenção: Maria Dueñas, com a referência de que fora a autora do best-seller "O Tempo entre Costuras". Dedica-me à sinopse e descubro uma personagem feminina, professora universitária, investigadora da área da Linguística, que por motivos pessoais procura estabelecer-se muito, muito longe de Espanha e acaba na Califórnia a debater-se com problemas pessoais  e com uma investigação que nada lhe interessa. A princípio...
Trouxe-a para casa, recordando a força da sua outra personagem feminina que vi em filme. E estou muito satisfeita com ela. Desvia-me frequentemente das minhas obrigações e faz-me pensar nela, no tempo dela, nos sentimentos de toda a gente que em dois tempos e continentes diferentes desfila naquelas páginas. Parece mesmo o tipo de romance que eu queria ter. Ou ler. Que é a mesma coisa, quando a leitura nos apaixona.
E hoje, entre uma turma de testes e a reescrita de um capítulo de uma obra de História, leio assim:
"(...) No princípio da contenda, todas as faculdades e centros da nova Cidade Universitária estavam já numa fase bastante avançada de construção, quando não concluídos e em pleno funcionamento. Pouco haveria de durar, no entanto, o cheiro a tinta fresca, o brilho dos vidros e as carteiras de madeira recém-envernizadas. A guerra sangrenta reduziria a escombros uma universidade que avançava airosa a caminho da excelência. Esmagaria grande parte do seu património científico, artístico e bibliográfico e empurraria para o abismo do exílio numerosos membros do corpo docente. Ao cair Madrid, aquele ambicioso sonho monárquico de um campus de esplendor americano ficara brutalmente arrasado e os edifícios reduzidos a horrendos esqueletos. Das quarente mil árvores que se plantaram, apenas ficaram as raízes. O local das salas de aula foi ocupado pelas trincheiras; o dos dois laboratórios pelos parapeitos. Com as enciclopédias e os dicionários fizeram-se barricadas, e os sacos de terra, as espingardas e os cadáveres espalharam-se, sinistros, pelos anfiteatros e bibliotecas.
Os mortos na Cidade Universitária foram milhares. Entre eles esteve Marcelino, de barriga para baixo sobre aquele solo destinado a fazer florescer a ciência, o saber e a esperança e não o horror e a morte. (...)" Dueñas, María, Recomeçar, pp. 53-54.
Recordo uma frase que vi no Facebook: "Na guerra não há vencedores nem vencidos. A guerra é a derrota da inteligência humana." E tremo só de pensar no horror que deve ser uma guerra civil. Uma guerra contra um inimigo que conhecemos, amamos ou amámos, com quem convivemos, com quem comungamos tanta coisa. Um inimigo que não é algo exterior, mas uma parte de nós...

Não sei como vai evoluir o livro, mas já me ganhou e isso nota-se pela forma como as páginas já estão abertas, vividas sofregamente.O outro livro, lido sem amor, impecável, será entregue na próxima semana à biblioteca municipal para que outros o possam apreciar mais que eu. E, que injustiça, nem o citei: chama-se Um Anjo da Guarda e é de um autor da moda - James Patterson. Que descanse em paz, entre os outros volumes, porque a mim também me deixou em paz e me deu a vontade de ser desinquietada por outra história, algo que me faça pensar, escrever, rir e chorar.

E Recomeçar promete!

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