segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Genealogias invisíveis entre regimes políticos diferentes

Três apontamentos sobre o tema, ligados - de repente, ou não - por essa coisa fantástica e com um certo grau de independência que é o cérebro de cada um de nós; neste caso, o meu:

Vejo regularmente uma novela brasileira "de época" em que uma Baronesa do Império de D. Pedro II se integra na República conseguindo que o marido se torne Senador. Em casa, entre os amigos e os servos, ela é "Baronesa"; em público ela é a esposa de um Senador da República, sem qualquer afinidade com o proscrito regime anterior.
Esta é uma das mensagens maiores da novela: a sobrevivência a qualquer custo de uma elite que decidiu ser elite seja em que contexto for. E que faz por isso os maiores contorcionismos para se manter no lugar que considera pertencer-lhe por direito.

Ao ouvir uma palestra de um dos netos de Aristides de Sousa Mendes sobre a acção e a reabilitação da imagem do seu avô, quedo-me nas palavras que nos chamam a atenção para uma certa hipocrisia de toda a situação, clamando actualmente que Aristides de Sousa Mendes foi banido da memória nacional pelo regime de Salazar e que foi necessário um apelo vindo do Canadá (dos seus descendentes) para descobrirmos a heróica acção deste português proscrito, quando, nas palavras de seu neto, surge a acusação a toda uma classe diplomática portuguesa. Dizia ele que a diplomacia portuguesa não foi completamente substituída com a Revolução do 25 de Abril de 1974, muitos diplomatas de carreira terão continuado a prestar serviço a Portugal e o seu silêncio era, por isso, injustificável.
Nunca fui investigar sobre isto, mas tomei-o como verdade, até porque uma carreira diplomática não se constrói rapidamente e é natural que a representação de Portugal no estrangeiro beneficiasse da manutenção de um grupo de diplomatas, regendo-se agora - evidentemente - segundo novos princípios e valores.

Leio agora mesmo um excelente artigo no Público sobre Humberto Delgado. Uma entrevista do seu neto e biógrafo, nascido já após a sua morte, mas investigador reconhecido sobre o tema. Ele fala claramente em falsificação de dados e ocultação das conclusões da autópsia feita pelos técnicos forenses espanhóis que não deixavam dúvidas sobre uma morte lenta e dolorosa, transformando-a numa morte rápida, com um tiro, da exclusiva responsabilidade do seu executor que poderia até nem ter quaisquer instruções do Governo. Um acto rápido, talvez impulsivo, de um único homem, sem conhecimento provado do regime. Segundo Frederico Delgado Rosa isto foi feito para proteger a figura mitificada de Salazar, mesmo depois da mudança de regime:  
"Portanto, a Justiça portuguesa do pós 25 de Abril, numa espécie de genealogia invisível entre a ditadura e a democracia, querendo preservar e ilibar a figura sacrossanta de Oliveira Salazar, já para não falar do ministro do Interior, Alfredo Santos Júnior, a quem respondia também o director da PIDE, Silva Pais, tinha ali essa verdade inconveniente que envolvia directamente o chefe da brigada, Rosa Casaco, e por conseguinte o superior hierárquico que era o inspector Álvaro Pereira de Carvalho, Barbieri Cardoso, o número dois da PIDE, e Silva Pais, o director da PIDE, até chegarmos a Salazar."

E foi a referência a esta «genealogia invisível entre a ditadura e a democracia» que fez o clic em tudo isto.
As pessoas não nascem com as Revoluções. As pessoas não mudam com as revoluções. Mas há pessoas que mudam segundo as revoluções, agarrando-se de todas as formas ao seu estatuto e mantendo «a pose» segundo os princípios em vigor.
Depois existem sempre os ensinamentos da minha avó - que tanto guiam a minha vida - que dizia que muitas pessoas não aderiam logo entusiasticamente a um novo conjunto de ideias porque elas, muitas vezes, voltavam para trás. De facto, a História mostra-nos revoluções e contra-revoluções e frequentemente o esmagamento rápido de ideais a que muitos tinham aderido. Há gente que nunca é radical "just in case"...e outros que, por debaixo de novas roupas são fiéis aos princípios que os formaram e que fizeram deles as figuras notáveis que eles se consideram.

As genealogias invisíveis entre regimes! Os frequentes entraves a uma rotação mais rápida de uma nova versão do país. As permanências na mutação...os escolhos de qualquer nova alvorada.

Para que haja referências concretas das minhas fontes: a novela é Lado a Lado na SIC, a Palestra aconteceu em Alcobaça há dois anos e o artigo do Público pode ser lido aqui http://www.publico.pt/politica/noticia/delgado-e--incomodo-ainda-hoje-para-muitas-pessoas-1686052?page=-1


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