quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Feriado

O Feriado é um dia excepcional, verdadeiramente.
Diferente dos fins-de-semana, esperados, ritmados, sincopados, o feriado surge assim "das brumas da memória" para nos interromper as nossas rotinas.
O Feriado não tem nada programado. (Já estou a ver os leitores, de cenho franzido, indignados com tal afirmação: "Como não tem nada marcado? Tanto que eu esperei por ele, para ir ver a família, realizar aquele passeio ou para, tradicionalmente, assinalar o seu verdadeiro sentido e homenagear os mortos da família").
Talvez...não sendo católica praticante e tendo sido massacrada toda a minha infância e juventude com as revoadas de flores para o cemitério, para agradar aos que já tinham morrido, deixando à míngua de atenção os que poderiam morrer a qualquer momento (ou que se calhar ia morrendo, pelos menos em partes) não assinalo o Feriado no seu sentido (a). Sei-o, comunico-o, respeito-o, mas para mim é um bónus inesperado que irrompe na minha semana e que rasga um sol de preguiça no seio de mais uma semana.
Nem para o "Pão por Deus", para o qual tinha abastecido a despensa ontem, me apeteceu abrir a porta, perante os toques impertinentes (se calhar eram só alegres, sei lá) dos jovens que provavelmente eram meus alunos e a quem não me apetecia enfrentar com o cabelo desgrenhado e o fofo roupão cor de cereja que sempre me faz pensar em lordes a fumar cachimbo, enquanto lêem preguiçosamente o jornal.
Não abri. Não fui tomar café. Não me vesti.
Arranjei um belo tabuleiro de café. O seviço da Vista Alegre ficou ainda mais alegre com as coloridas frutas de que me servi. O tabuleiro estava digno de uma Lady servida por criadagem.
Depois...o Feriado é o dia ideal para terminar um livro.
Quando nos apaixonamos por um livro, os poucos tempos livres da semana sabem a pouco, a uma traição a uma paixão: uma paixão precisa de tempo inteiro.
Acolhi no colo a prosa de José Eduardo Agualusa para o desenlace da vida daquelas personagens que misturam a realidade com a fantasia, os seres naturais com os sobrenaturais...
Lágrimas e risos depois estava tudo terminado num espanto de descoberta.
Gostei. Gostei muito da prosa de Agualusa. Só o conhecia das crónicas. Fiquei com vontade de ler mais.
Agora a casa cheira a cozinhados. Talvez alguém passe na escada e aspire hoje o perfume de lar que daqui se emana, como eu costumo fazer nos outros dias, nos dias normais que não são Feriado.
Filmes, séries, gavetas arrumadas.
O dia de amanhã é só o resto da semana. Uma interrupção num descanso que me parece legítimo.
Não sem culpa.
Quatro turmas de testes acumulam-se acusatoriamente na mesa da sala.
Mas o meu ordenado diminuiu, o meu tempo de trabalho presencial na escola aumentou, as turmas cresceram em alunos cada uma e mais uma no total. São sete turmas, a mais de 20 alunos cada uma. A minha direção de turma tem 27 alunos. E os pais, e os filhos e os papeis.
Deveria trabalhar no Feriado? Não, não deveria.
A minha motivação diminuiu ainda mais que o meu ordenado e contra isso pouco há a fazer.
Sou um número, sou um código, sou um risco na estatística e daqui a pouco uma exceção numa sociedade de desempregados. Ou não, que o que tomei por seguro já não dá garantias e este ano letivo bem notório está a ser.
Cumprirei o que devo, para com os meus alunos. Continuo a acreditar muito no que faço, a sentir-me compreendida por alunos que já perceberam tudo: um, um dia destes, disse-me que eu vivo no mundo do «devia ser» e que penso como os filósofos. Ele disse-o com ar de desprezo, eu aceitei-o como um elogio e uma condenação. Que tenho de cumprir. Fiel que me sinto a mim mesma. Isolada, Espantada com o que vejo em volta.
Penso em todos os que devem ter sentido coisas parecidas - o mundo a desmoronar - noutras crises que a Hstória alberga, arrumadinhas, em páginas com número limitado de caracteres, que nos lembram dos outros. Como alguém um dia se vai lembrar de nós. Vai?

"Não se atormente mais. Os erros nos corrigem. Talvez seja necessário esquecer. Devíamos praticar o esquecimento.
Jerónimo abanou a cabeça irritado. Rabiscou mais umas palavras no pequeno caderno. Entregou-o ao filho.
O pai não quer esquecer. Esquecer é morrer, diz ele. Esquecer é uma rendição."
Teoria Geral do Esquecimento, p. 221.

E porque não quero esquecer nem relevar o que me estão a fazer, o que nos estão a fazer a todos, culpando-nos da crise, envolvendo-nos na nossa culpa para legitimar todas as perdas de direitos, talvez vá começar mais um livro, para gastar em tempo próprio o Feriado. Um livro que me leve para o mundo do «deve ser» ou do pode ser, porque preciso que a ficção me salve da realidade. 

(a) Nota: Eu sei que o Dia dos Fieis Defuntos é amanhã, mas também sei que grande parte das pessoas aproveita o feriado para guarnecer as campas para que os seus entes queridos estejam confortáveis no dia certo e para que as línguas dos vizinhos não tenham motivos concretos, num dia que se assinala de saudade e elevação de orações.

2 comentários:

Ninguém.pt disse...

Sei, Miss, que este poema pouco tem de comum com o que escreveu.

Mas, não sei bem porquê, lembrei-me dele e procurei-o.

Mil perdões.

OS HOMENS OCOS

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada
Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;
Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam – se o fazem – não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.


T. S. Eliot

Beijito, Miss.

Escrivaninha disse...

Obrigada, Mestre.

Uma das coisas interessantes da escrita é porque é que algumas palavras nos lembram de outras. Deve haver uma explicação...

Gostei muito. E não achei que "os Homens Ocos" estivessem desalinhados com o que escrevi e o que sinto, repetidamente, cada vez mais, quase constantemente.

Beijito.