domingo, 11 de novembro de 2012

Estimação

Durante muito tempo a morte era o centro da vida.
Vivia-se falando na morte, preparando a morte.
A religião católica consagrou divindades à "Boa Morte" e "ao Bom Fim". O desejo de todos era ter uma boa morte, uma vez que essa seria o início da verdadeira vida.
A morte, porque muito frequente, era vivenciada por todos com a maior naturalidade.
Honravam-se os mortos, velavam-se os mortos em casa (Alice Vieira tem ums crónica maravilhosa sobre a forma como a mesa da sala de jantar da casa de suas tias se tornava periodicamente suporte para os caixões de familiares e amigos, voltando depois a desempenhar a sua principal missão, com naturalidade), esperava-se a morte quando ela se aproximava. Não se afastava a morte de casa, das conversas, dos sonhos. Ela era omnipresente.
Depois chegaram os hospitais, os lares, as famílias assoberbadas de trabalho e nucleares - seja lá isso o que for - a rude realidade de uma família pequenina, arrumada num T1, onde mal cabiam a saca de batas e o garrafão de azeite que a família da terra fazia de questão de meter na mala do carro na visita anual dos familiares.
Os velhos estavam lá longe, no campo, que a vida da cidade não dava para aqueles ritmos que envolviam pores do sol e orvalhos.
A electricidade eliminou os horários. Todo o tempo é tempo de tudo e o descanso faz-se entre apitos de desperatdores e lembretes de telemóveis.
Família mais pequena e longínqua, corresponde a menos mortes e vividas de forma mais apressada, com direito a tempo legislado conforme a quantificação do desgosto em lei. Pai, mãe, avós, cônjuge, os amigos nem lá estão e só a complacência de um médico poderá avaliar o estrago causado em nós pela partida de alguém com quem não tínhamos outro laço senão o de termos criado uma empatia para a vida toda.
A morte foi sendo afastada do nosso quotidiano. Mas, em vez de a tornar um acontecimento de somenos importância, parece que nos apanha sempre de surpresa e nos magoa cada vez mais. Não estávamos preparados...Mas não devíamos estar? Se há coisa certa é a morte. Mas...
As crianças deixaram de ir a funerais. Ficam em casa com amigos, enquanto a família se dirige à Casa Mortuária, de preferência lá perto do cemitério, longe do centro da cidade que continua a borbulhar, alheia a "toques de finados" e terços rezados por semi-profissionais do velório.
A morte é um assunto muito raro...e perturbador. "Não devíamos passar por isto", não sabemos passar por isto. E criamos profissionais e grupos de ajuda para nos ensinarem a superar as perdas.
A morte, adiada o mais possível, é hoje vivida como algo de exceção, que todos sabemos que existe mas não nos preparamos para lidar com ela. Porque durante praticamente toda a vida a afastamos dos nossos discursos e das nossas vivências.
E hoje a vida pode prolongar-se...parece até que para sempre.
"Professora: acha que a ciência um dia vai descobrir maneira de sermos imortais?"; "Não sei, talvez. E queremos ser imortais?" - "Eu quero", disse o coro.
Eu não sei se quero, mas queria que os outros fossem. E que fossem eles a viver a minha partida e não o contrário.
Eu não sei viver as perdas. E desde tão nova lidei com elas!
Eu não sei sequer como vou enfrentar a perda da minha gata, companheira de 16 anos, que está por dias.
Podia ter sido ontem. Apagava-se como uma velinha, o corpo a esfriar, uns gemidos ténues. E eu pensei que era capaz de a deixar morrer, mas não fui.
Está lá agora, com as agulhas de soro enfiadas nas patas. O corpo já aqueceu. Toma agora medicamentos para que a bexiga funcione, porque ela quer parar.
Queria ter coragem para ir lá amanhã e trazê-la para casa. Deixá-la apagar.se assim, como será natural, mas não sei se sou capaz.Queria embrulhá-la num cobertor, fazer-lhe festas na pata e deixa-la partir. Ela está preparada para partir. Eu é que não estou. Tenho de saber deixa-la ir. Tenho de saber parar com isto, com este prolongamento artificial aos arranques de uma vida que não tem mais tempo.
Curiosamente apercebo-me que nunca co-habitei 16 anos seguidos com ninguém. Só mesmo com esta teimosinha peluda, miona, exigente e meiga, que vai partir.
O que será que aconteceu aos gatos do Manuel António Pina? Como estarão a encarar a partida do dono?

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