quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Pra minha estante de memoráveis...a quem devo o que sou

O dia em que se termina a leitura de um livro é um dia ganho.
Hoje terminei de ler um livro: Maria Adelaide Coelho da Cunha, Doida Não e Não!: Um Escândalo em Portugal no início do séc. XX, escrito por Manuela Gonzaga e publicado pela Bertrand em 2009.

Muito bom. Um livro que prendeu muito a minha atenção por diversas razões:
- está muito bem escrito
- relata uma história real
- é um estudo histórico metodologicamente bem feito e disponibiliza as fontes
- tece considerações muito interessantes acerca do contexto histórico
- faz-nos pensar no que é "ter tudo" no conceito do senso comum, nos conceitos de justiça, de moral e, sobretudo faz-nos pensar no que é o condicionamento social sobretudo para uma mulher. E também a diferença entre o que está escrito na lei e o que muitas vezes se pratica.

Demorei muito a ler este livro. Não o lia assim, de ânimo leve, aos bocadinhos entre coisas, como faço com tantos outros livros. Li-o quase de uma forma religiosa, não é bem religiosa...respeitosa. Respeitosa pela memória de quem viveu aquela história, de quem guardou as provas, de quem investigou e escreveu, de quem publicou.
Este era um livro cheio de gente, cheio de conceitos e de preconceitos.
Preparava a leitura de cada capítulo com cuidado, verificando se tinha tempo de encetar e cumprir aquela etapa.
Foi um livro que li com três marcadores.
Um livro que se lê com três marcadores é uma obra de respeito.
Um dos marcadores assinalava, obviamente, a página em que a leitura terminara (ou, mais exactamente, em que a próxima leitura começaria), outro marcador assinalava as notas de final de capítulo, de forma a que a sua consulta fosse fácil e célere e não interrompesse a leitura, antes a completasse. E o último marcador assinalava as referências (bibliografia e fontes) a que recorria por vezes para ampliar o conhecimento do texto e das notas.
Terminei-o hoje num café onde gosto de ler.
Prolonguei depois a leitura no registo de algumas citações e neste registo reflexivo.
O livro é emprestado e sei que terei dificuldade em separar-me dele.
Em separar-me das suas personagens, da imensa admiração com que fiquei pelos seus protagonistas principais e do encontro ou reencontro com tantas personagens do Portugal da 1ª República, que tanto me fascina. Mas que também vai, cada vez mais, me desiludindo.
As figuras que estudamos como grandes, envolvidas em enredos mesquinhos que não tinham outro objetivo senão manter o status quo dos seus pares...
Maria Adelaide Coelho da Cunha ficou agora, nas minhas estantes de memoráveis, junto de Manuel Buiça. Alguém que não abdica da sua integridade e vai em frente realizando o que considera certo, ainda que isso afronte toda a sociedade. Ambos são casos de amor e de ruptura. Ela rompe um casamento "de capa de revista" para assumir um amor que ninguém no seu meio compreenderá: um homem mais novo e pobre. Ele rompe com a vida (literalmente) por amor à Pátria e aos ideais da República. Certo é que ele mata uma pessoa, seria o que hoje chamaríamos um assassino e um terrorista, mas não consigo deixar de me fascinar com a sua figura, com a sua actuação, com o seu testamento para os filhos invocando os valores morais pelos quais agiu.
Quantos de nós teríamos a coragem de enfrentar assim a sociedade, de lutar até ao fim pelos nossos princípios? Quantos de nós seríamos capazes de verdadeiramente vestir a palavra herói?
Sei que chamar herói a um assassino não será politicamente correcto e que, se eu olhar do outro lado, a família real destruída ( a vida da D. Amélia impressiona-me muito pelo sofrimento) e um país que nem sequer soube honrar a dádiva de vida dos regicidas, o sacrifício de Manuel Buíça terá sido em vão...mas as vidas destas duas personagens estão de alguma maneira ligadas à minha: mulher livre, republicana, independente. Sem eles, eu não seria possível. Obrigada!

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