sexta-feira, 30 de maio de 2014

Espírito de sacrifício

Como quase todos os professores por esta altura cá estou eu a ver os testes.
Na maioria estão bons, acreditando eu que este esforço bem sucedido do final do ano comprova a falta de trabalho do resto do ano. Se era possível ter boas notas, porque o não tiveram antes? - interrogo-os frequentemente. Sorriem com um ar fugidio. Alguns perguntam-me como era eu como aluna e eu respondo sempre que só falarei sobre isso na presença do meu advogado.
Mas é sobre isso que eu quero falar aqui, aproveitando que esta é uma ZLAEa (Zona Livre de Alunos e Ex-alunos)*.
Então, eu era uma aluna que só trabalhava no primeiro e segundo períodos. Demasiado zelosa ( e medrosa) para deixar tudo para o fim, poupava, no entanto, as minhas energias todos os finais de ano, pois desligava o motor quando percebia que dois terços do ano estavam ganhos - e frequentemente bem ganhos - e entrava de férias lá pelo final de Abril, aproveitando os bons ventos das competências adquiridas nas disciplinas que gostava e estudando os mínimos para aquelas em que nada cá ficava.
Mas o que me espantou - ou me pôs a refletir - neste final de ano letivo, visto do lado de cá do estrado (alusão puramente simbólica que os estrado desapareceu em nome de uma democratização do ensino que levará, a breve trecho, à construção de um fosso para instalar o professor, com letra pequena, naturalmente) foi a situação contrária, foi o sentido do dever que leva bons alunos a estudar afincadamente aquilo que não gostam.
Passo a explicar:
Tenho uma turma muito boa que acompanho há já três anos. Deixarão na próxima semana o estudo da História como disciplina, pois a maior parte enveredará pelas ciências, almejando um lugar na Faculdade de Medicina ou um estágio num grande laboratório americano.
Comentava eu com eles que me tinha parecido mal que um deles tivesse gritado a plenos pulmões que tinha feito o último teste de História da vida. Eis senão quando me deparo, com surpresa, com a solidariedade de outros, alguns alunos de nível 5 mais que sólido, pois também estavam aliviados por terminar a disciplina que dava muito trabalho.
Fiquei atónita! Nunca me teria passado pela cabeça que aqueles jovens, que têm notas excepcionais, não gostassem da disciplina. E isto porque eu seria incapaz de me esforçar por ter '5' a uma coisa que não gostasse. Se não gosto, faço o mínimo para cumprir o que é necessário (numa disciplina para passar, num processo burocrático para entregar a papelada a tempo, etc) mas nunca me aplico com o afinco que terá como resultado o brilhantismo.
Depois fiquei a pensar que não sei se isto é de feitio ou de educação, mas eu não tenho muito o "sentido de dever" naquilo sobre o qual não reconheço pertinência. Aquelas crianças/jovens terão talvez a facilidade e docilidade (que em mim é escassa) cumprir coisas profissionais às quais não reconheçam sentido.
Eu não tenho nada o espírito de sacrifício.
Por vezes penso que isso tem a ver com a minha educação cristã, que falava de um Deus (creio que era sobretudo Jesus) muito bem disposto que nos queria felizes. Tive pouca educação para a penitência e para a culpabilização. Graças a Deus!
Se eu puder não fazer sacrifícios porque os hei-de fazer? Há gente que voluntariamente se sacrifica, que carrega sobre si um peso imenso e que passa o tempo a fazer coisas que não gosta mas que acha necessárias. Eu tento sempre o outro caminho: o mais ensolarado. Se as nuvens forem muito negras lá terá que ser, mas vou sempre espreitando se haverá uma vereda com menos nuvens ou com árvores menos cerradas.
Mas na profissão vai sendo difícil! A burocracia impõe-se fazendo perder o sentido do sol que iluminou a minha escolha profissional.
Esta época é muito complicada: estou a sofrer por antecipação a separação com os garotos que vi crescer e evoluir durante 3 anos e a desertificação da escola, ficando apenas os professores e funcionários, ajoujados com tarefas burocráticas, que passam arrastando carrinhos de mão imaginários cheios de tarefas, retirando os limos do navio-fantasma em que se transforma uma escola sem alunos.
E aos que me dizem "Estás quase de férias" não respondo, porque tenho vergonha daquilo que fizeram aos professores, que eram profissionais que tinham trabalhado muito para tirar uma licenciatura, que trabalhavam diariamente para aprender a nunca deixar de aprender e para poder ensinar a pensar.
E lá vamos para o final do ano letivo, que em muito difere do final do ano escolar!

* alusão a um tempo em que diversas terras (das quais conheci várias no Alentejo e na Amadora) eram ZLAN: Zonas Livres de Armas Nucleares.

Sem comentários: