terça-feira, 14 de janeiro de 2020

As relações em espelho

Andar em grandes limpezas e arrumações faz com que o nosso (pelo menos o meu) cérebro faça reflexões profundas.
Vou pensando cada vez mais que a japonesa das arrumações tem razão: ao arrumar a nossa casa arrumamos muito mais que a casa, tralha, questões materiais, arrumamos mesmo a nossa vida. Nunca pensei que o pequeníssimo livro dela tivesse tanto efeito em mim: se começar à procura de um gatilho em todas as minhas transformações recentes, sou capaz de chegar até à leitura do livro dela, que não sei se foi anterior ou não ao retiro de meditação, mas foi certamente anterior ao meu início do taichi. De forma que esta minha procura de o que é que começou a minha mudança se vai revelando uma viagem «pescadinha de rabo na boca», porque não consigo determinar o que é que a começou, mas se calhar foi um processo interno, uma maturação, um ponto de chegada que determinou em por-me à procura e encontrar o livro, o retiro, o curso, o grupo...o afastamento do trabalho e este tempo de pensar.
O parágrafo anterior foi um desvio àquilo que vinha dizer...
Entre as muitas coisas que vou encontrando no sótão e que me fazem recordar coisas, encontrei um divórcio completo. Não meu. O de uma amiga minha, que teve como resultados materiais para aduzir ao sótão um conjunto de revistas de História que o marido tinha na casa de que tinham de se livrar e várias prendas dela para mim numa época em que ficámos muito próximas, por eu ter servido um pouco de ponto de apoio.
Entre as prendas que recuperei agora está um lindo expositor (não sei como se chama àquilo) para bolos (um prato e uma campânula) em vidro. Estava ainda dentro da caixa original de uma marca cara, muito conhecida e reconhecida pela qualidade. Lembro-me de ter pensado o que iria fazer com aquilo. Fiquei muito perplexa porque, sobretudo naquela época, aquela prenda nada tinha a ver comigo: não cozinhava e quase não recebia visitas; para que precisaria eu de uma coisa tipo «família e amigos: grande recepção cá em casa»?
Ontem retirei-a da caixa, lavei-a, sequei-a e dei-lhe um novo lar num armário que libertei para as louças que virão do sótão da minha outra vida. Voltei a pensar na razão de ser daquela prenda. Depois contemplei o serviço de chá que tenho na cozinha que ela me ofereceu, porque era imprescindível para o pequeno almoço...meu, que uso uma caneca para o leite.
Mas depois pensei que, naquela época, eu também lhe ofereci prendas que tinham a ver com a minha maneira de ser e de pensar e não com a dela: lembro-me particularmente de um tachinho de grés, pequenino, para fazer ou aquecer no forno uma ou duas doses de comida, não dava para mais. E lembro-me da perplexidade dela, habituada a objectos e utensílios para a sua vasta família e amigos.
E depois comecei a pensar que, frequentemente, nós não pensamos nos outros na sua individualidade e tentamos molda-los à nossa imagem e semelhança.
Para mim o divórcio dela era a oportunidade de ela viver aquilo que eu considero a verdadeira felicidade: estar sozinha, calma e em paz, não ter que se preocupar com nada nem ninguém da porta para dentro; tornar o lar o nosso castelo, (forte, refúgio, resort, bunker), o que for preciso para atingir o nirvana do isolamento; ela acalentava a esperança de que eu, com a minha independência e a minha casa, descobrisse a verdadeira felicidade: constituir uma família com marido e filhos (ou enteados, que naquela altura talvez já fosse tarde para ter meus, ou pelo menos tarde para ter vários) e necessitasse de toda a aparelhagem correspondente a uma feliz dona de casa.
Ela casou-se de novo, claro. Era o seu modelo de felicidade. Eu continuo sozinha, claro. É o meu modelo de felicidade.
Pergunto-me o que terá feito ao pequeno tacho?

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