quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Como um cartoon

O enorme, robusto e vetusto prédio da frente está a ser pintado. Fica a uma distância grande (não deixa de ser o prédio da frente) porque temos um jardim e dois braços de rio de permeio. Assim sendo, permite-me uma visão bem distanciada da obra. Suficientemente perto para ver e ouvir os operários autores da obra, suficientemente longe para ter a visão de conjunto.
Está a se pintado de um amarelo forte muito agradável. Reflicto que por estes dias muitos prédios desta cidadezinha estão a ser aveludados de amarelo forte ou grená, o que enche as páginas urbanas de um colorido outonal muito agradável. E creio que no Verão, banhadas pelo sol, também serão muito confortáveis de frequentar.
Bem, este distanciamento vizinho permite-me então ver a obra avançando. Montagem de andaimes do lado direito, protecção das janelas, limpeza, pintura. Desmontagem dos andaimes e repetição do mesmo processo, lâmina a lâmina para o lado esquerdo do edifício.
Estão na segunda metade agora. Diminuiu o número de operários. Hoje de manhã só lá andava um.
De dentro do prédio uma senhora abriu a janela e, percorrendo a varanda, começou a inspeccionar o espaço que já está livre de andaimes. Tinha uma pistola de limpeza na mão e envergava um avental.
Um pouco mais acima o único operário do dia retirava as fitas de protecção das janelas e, terminada cada janela, escorregava por entre os andaimes para outra janela, por vezes de outro piso, como se fosse invertebrado, ou um boneco daqueles jogos labirínticos.
Toda a cena vista de longe parecia um cartoon. Imaginei-os com pequenos balões a sair das bocas.
A senhora recuou, o operário desceu...Durante uns minutos esperei que eles chocassem, conversassem, que os balões se enchessem de símbolos que significam imprecações.
Na...a senhora deu a volta sempre a fitar atentamente o corrimão da varanda; o homem desceu duas janelas e, provavelmente nem deu por ela.
Amanhã ou depois retirarão os andaimes e o prédio volta a ser um prédio e eu perco o privilégio de criar diálogos com as personagens pequeninas que povoaram, por semanas, a vista da minha janela indiscreta. 

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