sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A Morte

É hora de pensar nos que partiram.
Cada vez mais penso neles. Burilando o que já pensei das suas vidas, vou descobrindo novos sentidos para as coisas, vou perdoando o que me tem magoado, vou relativizando os choques havidos, vou tentando compreender... É bem verdade que a História precisa de distância para se despir da emoção do momento e ser então História, não isenta (nunca o será) mas explicativa, exemplificativa, educativa.
Essa questão das «lições da História» também me merecerá um dia um texto, mas hoje o tema era a morte. A nossa relação com a morte, enquanto indivíduos e enquanto sociedade.
Sempre achei que quando chegamos à discussão da nossa relação com a morte é que pomos a nossa fé à prova. Tudo corre bem (para os otimistas, claro) desde que a vida vá fluindo à nossa volta, mas quando nos deparamos com a inevitabilidade da morte colocam-se as questões fundamentais da Fé. Há quem diga que é aí que ela é verdadeiramente posta à prova.
É hora de lembrar os nossos mortos. Parece que partiram todos cedo demais. E quanto mais nos vamos aproximando «da idade» (que lindo! parece até que houve um tempo sem idade...) até os que partem velhos nos fazem falta.
Frequentemente os meus alunos perguntam-me (face a todo o meu entusiasmo pelo progresso humano) se chegaremos à imortalidade. Não sei.
E queremos? Eu acho que queria.
Dizem-me que um dia estaremos cansados de viver. Se assim for...Mas não me parece possível...
O que é certo é que a morte de uma criança ou de um jovem chega sempre - e disso ninguém duvida - cedo demais. E o que dizer aos pais que geraram um filho com expectativas de o ver crescer? Como aceitar uma amputação dessas? Um casal que perde um filho deve sentir-se amputado, incompleto...
É a vontade de Deus...Será?
Chorar os mortos no dia de finados poderá aliviar algumas dores, mas a morte de um filho, um irmão, um colega, um amigo na infância ou na adolescência, por mais que sinta que vou crescendo em relação a estas questões\ da morte, creio ainda que é inaceitável!
O pior é que é cada vez mais inaceitável: mas então agora não curam quase tudo? Porque ficaram aqueles na réstia do «quase»? Porque não se consegue eliminar o sofrimento? Por vezes - tenho tanto medo de estar a ser injusta - parece até que aumentamos o sofrimento, esticando, prolongando, adiando o inevitável. Porque afinal a esperança é sempre a última a morrer.
Tempos houve em que a morte era tão frequente que não se questionava. Rezava-se apenas para ir escapando daquele jogo entre a vida e a morte que parecia não ter regras. Defendiam-se com as superstições: não dormir esticado porque a morte podia achar que estávamos prontos, evitar certas práticas ou praticar rituais para afastar o que é mau - e que o Diabo fosse cego, surdo, mudo, coxo e todos os outros problemas que o afastassem de chegar depressa junto de nós.
A mortalidade infantil era muito elevada. A morte das crianças era comum.
Seria certamente uma fatalidade, mas não era invulgar, não era esperada, mas era temida, era uma possibilidade sempre presente.
A morte estava muito mais presente na vida.
Depois a morte foi-se afastando da vida. Os idosos foram para lares, os doentes para hospitais. Longe da vista...longe do quotidiano, pelo menos.
Começou a proteger-se as crianças do contacto com a morte, do sofrimento que ela causa, do seu ser definitivo. Inventam-se desculpas, evasivas...«reencontrar-nos-emos mais tarde», «foi fazer uma viagem e depois havemos de nos reunir»...«adormeceu para sempre», «o sono eterno» e outros eufemismos com que vamos mascarando a brutalidade da realidade, a ineviatabilidade, a impotência de não conseguir explicar e aceitar.
- Cada vez mais há mortes assim...
- Olha que eu acho que cada vez há menos e por isso nos chocam tanto...
Será uma conversa que nunca chegará a conclusão nenhuma. O que é certo é que cada vez estamos mais impreparados para aceitar a injustiça de uma morte num mundo onde tudo parece resolver-se...menos a morte.
Todos temos alguém para chorar nestes dias. E, em certos casos, parece que todas as lágrimas são insuficientes para expressar a nossa incompreensão, a nossa solidão, o nosso desamparo perante a Morte.

2 comentários:

Ninguém.pt disse...


POEMA DA DESPEDIDA


Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo


Mia Couto



Ninguém está verdadeiramente morto enquanto for recordado pelos que amou: restam dele as raízes de afecto que plantou durante a vida.

Beijito, Miss.

Escrivaninha disse...

Muitas vezes penso que a morte é muito mais sofrida para quem fica.
Quem vai...esperemos que perceba porquê.

Beijito, Mestre.