Quando tivemos de empacotar os restos da vida da nossa mãe (ou os restos das muitas vidas que ela coleccionou e inventou) encontrámos muitos pedaços de nós de que já nos tínhamos esquecido: desenhos, roupas, brinquedos, fotografias...Era lógico, todos o esperávamos.
Mas eu encontrei também palavras que só tiveram sentido ali, expressões que nunca mais usei, um vocabulário que – sem nenhum de nós notar – deixáramos ali, há muitos anos.
“- A minha camisola grená!...” Foi uma exclamação, uma constatação, um reencontro com uma peça de roupa de que gostava muito e que a minha mãe também gostava. De repente ouvia-a a dizer “Porque não vestes a camisola grená?”, “Onde está a tua camisola grená?” e coisas assim.
E de repente percebi que já ninguém usa a expressão "grená". Aliás, de repente, ao dizê-lo também a mim a palavra soava estranha. Tinha ar de palavra antiga, cheirava a bafio e a memória, como o sabor do capilé, com uma casca de limão, que tomávamos nas tardes de calor.
Estupidamente, a minha imagem, vestida com a camisola grená, a beber um capilé, com a minha mãe, era uma imagem a preto e branco!
Hoje estou vestida de bordeaux (que dantes era grená), procurei e encontrei nas prateleiras do supermercado uma garrafa de capilé, mas já não me apeteceu compra-la.
Afinal, as cores, os sabores, as palavras, têm os seus contextos e só neles fazem sentido...
A minha camisola grená era uma peça de roupa extraordinariamente durável, ainda estava boa. Não conseguiria usa-la de novo, mas também não consegui deita-la no lixo. Ficou junto ao contentor, limpinha, a espreitar de um saco que convidava a ser levado. Talvez viva agora com outro nome, com outra cor, com outro contexto...Talvez tenha ganho uma vida nova, a vida que a minha mãe e as nossas memórias nunca mais poderão ter.
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