sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Como numa banda desenhada

"Estava uma manhã a estrear. Era aquela hora em que os movimentos se sentem mais do que se vêem. As lojas estão quase a abrir, as pessoas estão quase a povoar a rua, os carros estão quase a chegar. Parece que todas as personagens daquele cenário estão quase a tomar os seus lugares.
Nessas hora da manhã apetece-me sempre ficar mais um bocadinho, à espreita, à espera para receber o movimento da cidade, antes de me recolher, também, eu no meu lugar.
Estava eu então assim, à espera do momento certo para me retirar do cenário, quando se deu a cena.
Claro que eu já tinha reparado naquela rapariga, esplêndida, bem vestida, bem calçada. Bem...bem calçada para estar numa reunião que parecia esperar, um pouco desconfortável, à porta fechada de um escritório de advogados. Nitidamente custava-lhe estar, naqueles sapatos altos, lindíssimos, elegantes, no irregular chão antigo, de pedras a imitar as medievais que por ali teria havido.
De uma esquina apareceu então a outra mulher. Teriam a mesma idade, mas era a única coisa que tinham em comum. A outra, que era baixa e gorducha, envergava umas calças muito largas, com ar confortável e uma chinelas com ar brasileiro. Tinha um semblante enérgico e feliz e deslocava-se de forma muito rápida e segura.
Eram as únicas ocupantes da rua e claro que se viram, se olharam, quando a colorida gorducha passou rapidamente à frente da moça esplêndida que esperava, com todo o glamour, pela reunião que acreditamos que ia ter.
E foi então que, como numa banda desenhada, os pensamentos delas e materializaram em balões de palavras sobre as suas cabeças, em simultâneo.
Moça Linda: Que ar feliz e confortável que esta fulana tem! Mas é tão deselegante, coitada.
Gorducha Lesta: Que fulana tão linda! E tão elegante, caramba. Mas o que ela tem de passar para estar assim linda, coitada.
Foi um momento só! Os balões desapareceram ainda antes da gorducha virar a outra esquina e da moça linda assumir uma atitude mais atenta, provavelmente por ter avistado um carro que se aproximava.
Fui o único espectador desta cena, que me parece muito interessante: na definição do tipo de mulher, do que cada uma deseja, daquilo em que cada uma investe.
Inveja e admiração mútuas no flash em que os pensamentos delas se materializaram nos balões da BD.
E só eu é que vi. Não posso discutir isto com ninguém..."

Sem comentários: