sábado, 19 de outubro de 2013

Conforme

Tenho uma amiga nova no Facebook. Uma colega mais velha, que se reformou muito desiludida com tudo o que lhe/nos fizeram nos últimos tempos do seu trabalho. É uma pessoa que considero intelectualmente ativa e válida, uma professora que lê, que se mantém atualizada, que intervém, que se sente cada vez mais triste e ludibriada pela política, precisamente porque pensa e não aceita sem reservas as patranhas que os políticos e os jornalistas nos tentam "enfiar pelos olhos dentro". (E não vale a pena acrescentar o adjetivo de "maus" a políticos e jornalistas, porque neste momento considero ser essa a regra e assinalarei apenas a exceção se surgir).
Esta minha amiga por via dos seus interesses e dos dos filhos que educou é muito atenta a questões de literatura e cultura, das quais não podemos desligar as da política, porque determinam as outras, as que nos interessam.
E, de repente, entram-me pelo Facebook dentro notícias de que me tinha alheado. Por vezes precisamos de um abanão. Eu precisava de voltar a estar atenta a estas coisas. Evito os noticiários porque me agridem, me entristecem e me ofendem. Num país que tento ajudar a educar há tantos anos é muito triste constatar o nível tão baixo de cultura que nos vendem e que nós compramos. E eu decidi não comprar.
Por respeito aos meus alunos que me fazem perguntas, ouço diariamente as notícias no rádio e ao fim do dia, numa pequena volta que faço para exercitar as pernas, demoro-me um pouco em frente à banca dos jornais. Mas, verdade seja dita, há muito tempo que lá não entrava. Entrei ontem para comprar o JL e verificar na entrevista de José Mattoso que sou uma privilegiada por ter apanhado uma época de licenciatura em História em que tudo estava a acontecer. Parece que li a Identificação de um País assim que acabou de sair; e também os Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros; e o Portugal Medieval e - embora não esteja relacionado - lembrei-me de África, o Macaco e o Homem, que foi traduzido para português uma semana antes do teste de Pré-História e que teve de ser comprado e lido de imediato, pois tornou-se o tema do teste.
Foi uma sorte! Melhor só teria sido ter tido idade para participar conscientemente no 25 de Abril, mas teria depois uma desilusão. Eu tive um curso de História muito bom! Uma Faculdade de Letras ao rubro a afirmar que a História é uma construção do presente e que agora podíamos fazer à História as perguntas que quiséssemos, sem medo. Interrogar era a palavra de ordem. Procurar os outros para nos encontrarmos. E decidir. Poder decidir. Querer decidir. Decidir.
De alguma maneira havia um país anterior que convivia connosco: o dos nossos pais e avós. Apesar do entusiasmo que sentiam e da esperança que lhes saltava dos olhos eram mais comedidos, cautelosos, temerosos...ou, se calhar (sei-o agora) sábios, pois compreendiam que o entusiasmo ia esfriar e que as novidades iam ser enfiadas em formas anteriores, apenas pintadas com cores mais garridas.
Esse país era a minha avó e o seu verbo imperativo "Conformar".
A minha família foi atingida por desgraças enormes muito cedo. A minha avó perdeu o seu único filho. E teve de se conformar. Este era um verbo que ela usava frequentemente. "Temos de nos conformar com a vida".
Esta expressão de resignação sempre me irritou e entristeceu. Funcionava como um balde de água fria no meu entusiasmo juvenil.
Os olhos da minha avó ficavam baços quando ela dizia "Temos de nos conformar", até a sua postura mudava. Era todo um peso do destino que lhe assentava nos ombros quando ela se conformava, quando ela entrava na forma que o destino lhe atribuía.
Ao ler as notícias de tudo o que estamos a passar enquanto país, enquanto comunidade humilhada por um bando de bandalhos que se sente bem-falante e que pretende invadir a História do futuro (como tão peremptoriamente afirmou o rasteiro Relvas ao fingir que não estava a ser varrido do Governo) voltou com toda a força o verbo "Conformar". É o que estamos todos a fazer: estamos a conformar-nos. Ficamos com os olhos baços, curvamos as costas e desculpamo-los dizendo "Eles não poderiam fazer outra coisa: é a troika que manda" ou "Os anteriores ainda fizeram pior" ou, de uma forma definitiva: "Não podemos fazer nada".
O verbo "Conformar" invadiu-me toda outra vez, com a consequente irritação que me provoca. Será que as formas não somos nós? Será que mais uma vez tivemos um país em que a mentalidade das pessoas não acompanhou o progresso? É tão mais fácil ser mandado! A Democracia dá muito trabalho. Se nos conformarmos e vivermos as nossas vidinhas, de preferência com pouco, que para mais não fomos feitos, talvez consigamos levar o barco a bom porto e sofrer bem para ganhar o céu, que o inferno está aqui e não o conseguimos desfazer.
É disto que somos feitos? De conformismo?

5 comentários:

Ninguém.pt disse...

Há muito que eu digo que os políticos que nos desagradam só estão no poder porque nós não estamos.

É sabido que não cabem dois corpos no mesmo espaço...

Nós (mea culpa) demitimo-nos de fazer politica, deixámos que se profissionalizassem uns quantos. Servem-nos de desculpa, são os "eles" que constantemente culpamos de tudo.

Depois, a somar a este nosso desinteresse, afastámos as pessoas honestas da política — ao etiquetarmos todos de ladrões e corruptos. Só os que o são de facto se estão marimbando para essas etiquetas, o proveito que podem tirar supera isso tudo. Os outros, os realmente honestos, sentem-se atingidos, injustamente atingidos, e tendem a abandonar uma luta tão inglória, em que nunca se lhes reconhece a honestidade.

Se um dia levantarmos o rabinho do sofá e invadirmos os partidos políticos para os transformar por dentro, se um dia formarmos outros partidos se estes não nos agradam — nesse dia os profissionais da política serão corridos e os negócios públicos passarão a ser de facto públicos e sairá da discussão dos problemas a solução que preserve a liberdade e a dignidade dos cidadãos.

Faltará muito para esse dia? Continuaremos a encolher os ombros e apontar o dedo indicador para "eles"?

Temo muito que sim...

É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão.
Somos, socialmente, uma sociedade pacífica de revoltados


Miguel Torga


Penso que o primeiro acto da revolta devia ser fazermo-nos todos políticos.

Beijito, Miss.

Ninguém.pt disse...

Querem vocês ver que a Miss, conformada, ainda está na bicha para votar?

Talvez seja melhor alguém lhe chegar uma sede de água e uma bucha de pão.

Ânimo, Miss, já não deve faltar muito para a sua vez...

Beijito.

Escrivaninha disse...

:-)
Já votei, já votava outra vez.
E votava para saber quem inventou as reuniões inúteis que estou a ter diariamente, assim como uns inquéritos e umas estatísticas que nos sugam a energia e que ninguém me explica como melhoram o nosso desempenho e o rendimento do país.
Socorro!

Ninguém.pt disse...

¨
O comediante Fred Allen definiu assim reunião:

"Uma reunião consiste de um grupo de pessoas que sozinhas nada podem fazer e juntas decidem que nada pode ser feito."

É falta de visão, sôtôra, não perceber que a burocracia vai garantir postos de trabalho pagos a 100% pelos nossos impostos e que, de outro modo, teriam que ser pagos a 60% pelos nossos impostos...

Compre cinco coroas de paciência em pó, Miss. Ajuda pouco nas reuniões mas serve de placebo e é muito baratinha.

Beijito.

Escrivaninha disse...

:-)
E amanhã continuam.
Boa semana, Mestre!