Precisava de ler uma coisa leve...entrei na livraria do meu vizinho alfarrabista e preparava-me para uma penosa sessão de escolha de livros, entre aqueles em que os meus olhos batiam e as sugestões dele. Esta cena já se repetiu muitas vezes e sei que saio de lá com um ou dois livros, mas a sofrer por não poder trazer mais. Ele tem jeito para vender, eu sou fraca para resistir a livros.
Ele estava num dos estabelecimentos comerciais vizinhos. È sempre assim e eu sempre me espanto, pois admiro a descontração dele, sem ter medo que as pessoas roubem os livros ou o dinheiro da caixa. Se calhar ele é que tem razão...quanto mais medo temos, piores coisas nos acontecem.
Ele não estava, já disse e eu olhei para os livros. Retirei um da fila de lombadas que se apresentavam no móvel do centro da casa. Li a sinopse. Gostei.
Ele entra pronto para a nossa dança de sugestões e impedimentos, que sempre lhe sai bem.
Eu já tinha escolhido o livro. Escolhi o livro à primeira vista. O primeiro livro que vi. Mas parecia-me perfeito.
E lá o trouxe.
A leitura era leve, sim, mas teve em mim alguns efeitos que não esperava:
Primeiro fala do clima que antecede a segunda guerra e, infelizmente, esse clima parece ter voltado agora. A comparação foi dolorosa e aumentou muitos dos meus receios.
Toda a história se desenvolve em torno de uma mesma família, melhor, de três mulheres de uma mesma família, que se sucedem e que mantêm entre si um certo culto das histórias familiares. No fim do livro há um retorno da mulher (já a 3ª geração) ao local e a situações que envolveram a sua avó, aquela com quem esta narrativa começara.
E isso foi muito forte para mim, que cada vez mais vou desenvolvendo, intuindo, pressentindo a ideia de que a nossa vida e as nossas histórias se desenvolvem em ciclos que se fecham de alguma maneira.
E agora é o meu sobrinho que fixou residência na terra do bisavô (que nem conheceu), fechando (digo eu) um ciclo de um rapazinho que saiu daquela terra para trabalhar, mas que disse sempre que essa terra se iria um dia desenvolver bastante. E é agora para lá que o bisneto vai viver e criar família, numa urbanização que se expande. Ele, que foi o último a ficar na terra que o bisavô foi habitar quendo saiu daquela terra para onde agora retornam os seus descendentes.
E sou eu que continuo a achar que vim viver para a terra de onde seria originária a minha parteira, a pessoa que me trouxe ao mundo, o primeiro rosto apaziguador, que gostou de me ver e me elogiou numa noite escura e ruidosa, num parto não desejado em que a mãe esperava ainda a benesse de o nascituro ser um rapaz e, quando verificou que era mais uma menina, terá dado o trabalho todo por inútil.
Penso que eu, solteira sem filhos, dedicada a cuidar dos filhos dos outros, vim fixar residência na terra da mulher que, solteira e sem filhos se dedicou a fazer nascer os filhos dos outros. E que se recusava a terminar gravidezes indesejadas. Apenas amparava o nascimento dos que, apesar de tudo, vingavam.
Não sei...
Mas achei curioso o livro ser afinal uma narrativa circular.
A mulher que começa a narrativa, aquela que foge ao destino que lhe queriam traçar, tinha, na adolescência, muitos conflitos com a mãe. Era uma desilusão para a mãe. Sentia-se diminuída na família. Quando a segunda personagem mais importante da história a vê pela primeira vez, e se apaixona, ela ela estava a chorar após uma discussão com a mãe... e diz o livro:
"Ele soube - ou melhor, apercebeu-se, já que ela não falou disso - que Lorna era uma rapariga de certa forma em conflito com as circunstâncias."
E esta descrição ficou-me...assentou-me perfeitamente. Se escrever algum dia uma biografia ou um livro de memórias, acho que poderia chamar-lhe isso mesmo: Uma rapariga em conflito com as circunstâncias.
O livro a que me refiro é o romance Consequências, da autoria da escritora inglesa, vencedora do Booker Prize, Penelope Lively.