segunda-feira, 16 de junho de 2025

Em conflito com as circunstâncias

 Precisava de ler uma coisa leve...entrei na livraria do meu vizinho alfarrabista e preparava-me para uma penosa sessão de escolha de livros, entre aqueles em que os meus olhos batiam e as sugestões dele. Esta cena já se repetiu muitas vezes e sei que saio de lá com um ou dois livros, mas a sofrer por não poder trazer mais. Ele tem jeito para vender, eu sou fraca para resistir a livros.

Ele estava num dos estabelecimentos comerciais vizinhos. È sempre assim e eu sempre me espanto, pois admiro a descontração dele, sem ter medo que as pessoas roubem os livros ou o dinheiro da caixa. Se calhar ele é que tem razão...quanto mais medo temos, piores coisas nos acontecem.

Ele não estava, já disse e eu olhei para os livros. Retirei um da fila de lombadas que se apresentavam no móvel do centro da casa. Li a sinopse. Gostei.

Ele entra pronto para a nossa dança de sugestões e impedimentos, que sempre lhe sai bem.

Eu já tinha escolhido o livro. Escolhi o livro à primeira vista. O primeiro livro que vi. Mas parecia-me perfeito. 

E lá o trouxe.

A leitura era leve, sim, mas teve em mim alguns efeitos que não esperava: 

Primeiro fala do clima que antecede a segunda guerra e, infelizmente, esse clima parece ter voltado agora. A comparação foi dolorosa e aumentou muitos dos meus receios.

Toda a história se desenvolve em torno de uma mesma família, melhor, de três mulheres de uma mesma família, que se sucedem e que mantêm entre si um certo culto das histórias familiares. No fim do livro há um retorno da mulher (já a 3ª geração) ao local e a situações que envolveram a sua avó, aquela com quem esta narrativa começara.

E isso foi muito forte para mim, que cada vez mais vou desenvolvendo, intuindo, pressentindo a ideia de que a nossa vida e as nossas histórias se desenvolvem em ciclos que se fecham de alguma maneira.

E agora é o meu sobrinho que fixou residência na terra do bisavô (que nem conheceu), fechando (digo eu) um ciclo de um rapazinho que saiu daquela terra para trabalhar, mas que disse sempre que essa terra se iria um dia desenvolver bastante. E é agora para lá que o bisneto vai viver e criar família, numa urbanização que se expande. Ele, que foi o último a ficar na terra que o bisavô foi habitar quendo saiu daquela terra para onde agora retornam os seus descendentes.

E sou eu que continuo a achar que vim viver para a terra de onde seria originária a minha parteira, a pessoa que me trouxe ao mundo, o primeiro rosto apaziguador, que gostou de me ver e me elogiou numa noite escura e ruidosa, num parto não desejado em que a mãe esperava ainda a benesse de o nascituro ser um rapaz e, quando verificou que era mais uma menina, terá dado o trabalho todo por inútil.

Penso que eu, solteira sem filhos, dedicada a cuidar dos filhos dos outros, vim fixar residência na terra da mulher que, solteira e sem filhos se dedicou a fazer nascer os filhos dos outros. E que se recusava a terminar gravidezes indesejadas. Apenas amparava o nascimento dos que, apesar de tudo, vingavam.

Não sei...

Mas achei curioso o livro ser afinal uma narrativa circular.

A mulher que começa a narrativa, aquela que foge ao destino que lhe queriam traçar, tinha, na adolescência, muitos conflitos com a mãe. Era uma desilusão para a mãe. Sentia-se diminuída na família. Quando a segunda personagem mais importante da história a vê pela primeira vez, e se apaixona, ela ela estava a chorar após uma discussão com a mãe... e diz o livro:

"Ele soube - ou melhor, apercebeu-se, já que ela não falou disso - que Lorna era uma rapariga de certa forma em conflito com as circunstâncias."

E esta descrição ficou-me...assentou-me perfeitamente. Se escrever algum dia uma biografia ou um livro de memórias, acho que poderia chamar-lhe isso mesmo: Uma rapariga em conflito com as circunstâncias.

O livro a que me refiro é o romance Consequências, da autoria da escritora inglesa, vencedora do Booker Prize, Penelope Lively.

domingo, 15 de junho de 2025

O que conta a História? O que conta para a História? O que contamos para a História? O que queremos que a História conte? O que conta da nossa História?

 "- Palavras ou imagens?  - diz Manolo  - O que conta a história? 

- Ambas, suponho. Eu posso descrever este lugar, mas as fotos dão as cores das portas. Aquele bigode. As botas dele. O gato sentado no muro.

- Do período minóico só temos imagens. Viu-as...no museu. Os frisos das paredes , os vasos. Muitas imagens. O que todos queriam eram palavras...a linguagem.

- Linear B - respondeu Ruth - Eu sei. Você explicou-me.

- E quando finalmente as tábuas foram decifradas, eram listas de ovelhas e bois. Ou registos de trigo e azeite, e uma encomenda de banheiras - Manolo ri-se - Nada de poesia. Nada de peças pré-gregas.

- Suponho que a maior parte das nossas palavras seja acerca de ovelhas e bois e entregas de banheiras, ou o equivaqlente. Registos e comunicação.

- Claro. Foi assim que a linguagem começou. A poesia e o teatro são luxos. E a história precisa de saber acerca de ovelhas e bois e banheiras - Manolo volta aqueles olhos bizantinos para ela. Ruth sente-se menos triste."

Lively, Penelope, Consequências, pp.233-234

Sobre a mudança

"Ruth pensou na mudança. Nada dura para sempre; talvez nada devesse durar para sempre. Mas a mudança é um conceito traiçoeiro. Algumas mudanças acontecem simplesmente; as crianças crescem, tornam-se pessoas diferentes, as amizades enfraquecem ou intensificam-se. Acima de tudo, o mundo gira; a paisagem é um painel em movimento - uma sequência de acontecimentos inacessível, algo novo anunciado nos jornais, na televisão, rostos diferentes, lugares diferentes. Não se diz "Calma! Vamos manter as coisas como estão!", nem se quer fazê-lo, dadas as circunstâncias. Talvez a mudança seja o triunfo da esperança sobre a expectativa. O que quer que seja dá cor aos dias, aos anos. Seguimos com a corrente."
Lively, Penelope, Consequências, p.215

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Do avesso

 Hoje apeteceu-me acordar do outro lado do Atlântico, no Inverno e no começo da noite.

Hoje sentia-me no lado contrário do que quer que fosse: não quero estar aqui, não quero fazer o que faço, não quero ser eu...Hoje tudo grita para que eu faça uma pausa: mas não é uma pausa em qualquer coisa que eu faça, é uma pausa de mim.
Uma pausa de ser. Existirá? Se não existe deveria existir e hoje estou tão indisposta que me parece que se inventaram poucas coisas. Penso em tudo o que falta inventar...
Hoje apetece-me fechar numa cápsula e esperar que o mundo fique melhor, que se invente o que falta, que se retome o que se abandonou...
Hoje não sei o que tenho, porque se calhar ainda não inventaram um nome para o que estou a sentir. Mau feitio? Mal estar? Mas porque é que tenho eu que estar mal, se é o mundo que não me compreende e não me acolhe? Tenho de ser eu a aprender a viver com o mundo? Porque não posso mudar o mundo? Que chatice!
Chatice podia ser um sentimento, um estado de alma, mas nem a isso chega...Irritação? Inadaptação? E lá vêm os prefixos que antecedem e classificam a minha relação com o mundo...Com o mundo talvez não, que este sentimento é caseiro e limitado no tempo...pequenino, insinuante, como uma broca num dente.
Hoje acordei do avesso, que é também um lado válido. Será por ser sexta feira 13, dia dos canhotos, dia em que se esperam coisas estranhas?
Hoje, se o conseguisse, andaria sobre as mãos, tricotaria com os pés, olhava o mundo com um monóculo no umbigo e começava a fumar, cachimbo.
Hoje não sei que se passa, não me apetece ser eu, mas também não me apetece ser ninguém que eu conheça. Talvez se eu inventar outro ser para ser...e será que conseguia ser como deve de ser?
Não pode ser! Ainda não foi inventado e já está cancelado.
Hoje não me apetecia estar deste lado. Vou trincar um cogumelo e ver se aumento ou diminuo e caibo na toca do coelho para chegar por lá até ao lago do patinho feio, que é como eu me sinto.
Socorro! Não sei estar em mim, assim, num mundo que não me apetece, aborrece, porque desaprende, se desprende daquilo que estava certo...estava?...
E falo já no passado, antecipando um futuro que ainda não chegou. Será que consigo fazer alguma coisa para o retardar, para o pulverizar antes de existir?
Hoje doi-me existir. Talvez se eu dormir, afaste esta dor, este incómodo, esta inquietação de ser, de estar, de viver de pensar...
Ah, que isto hoje está tremido, retorcido, perturbado, conturbado, enevoado, atravancado. Isto hoje não está fácil, nem difícil, está qualquer coisa entre isso e isso, uma palavra que não sai, talvez porque ainda não foi inventada.
Será o dia de hoje bom para inventar palavras? As palavras inventadas hoje não ficarão na história, porque hoje há um buraco negro no lugar da existência que suga as palavras inventadas para um lugar onde os dicionários foram abolidos. Vou dormir para evitar uma parte do dia que promete.
Promete, o quê? Um conjunto de frases por completar, ditas por seres que não sabem se existem, porque se recusam a pensar sobre a própria existência. Sabe-se lá onde é que isso os poderia levar...
Ao centro da terra ou ao centro de si mesmos, um local muito doloroso de existir, um não lugar...Só por hoje...espero.