sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Inovelhando

 Os últimos dias têm sido ocupados em arrumações...o que implica sempre, cá em casa, rasgar muito papel. Descansem os ambientalistas porque é só aquele que não tem a possibilidade de ser aproveitado. Por causa disso tenho duas gavetas cheias com papel de rascunho e, como escrevo cada vez mais directamente no computador, tenho até receio de nunca vir a gastar este papel todo, de ter de deixar em herança aos meus sobrinhos um monte de papel que não faz sentido porque são restos de coisas para ser aproveitadas...

No meio de uns apontamentos de uma acção de formação em que deviam de estar a massacrar-nos com a necessidade de "acompanhar os tempos", de "enveredar pelo caminho das tecnologias", descubro uma frase marginal (escrita na parte de trás do caderno e não alinhada com o resto do texto), um claro resquício dos "papelinhos" que passava às minhas colegas durante uma escolaridade sem tecnologias, que dizia assim: «Decidi que a minha forma de ser inovadora é ser antiga: recusar o que é novo e manter as tradições. Com tudo a mudar a uma velocidade alucinante, a única forma de ser revolucionária é recusar o que é novo.» 

Estranho mundo este! (Esta frase é estúpida, porque o mundo, todos os mundos do passado quando eram presente e futuro, devem ter sido estranhos). Para ser inovador é necessário recusar as inovações que, frequentemente, nos impedem de pensar, na vertigem de acompanhar a novidade.

Lembrei-me de um livro da Rosa Montero em que quem salva tudo é um grupo de pessoas que se ocupam a decorar livros, para quando a tecnologia falhar. Eram uma espécie de humanos estranhos, marginais, que insistiam em ler livros e guardar na memória o que consideravam importante.

Não deixa de ser uma esperança...

Por outro lado não deixa de ser uma prova de que envelheci. Quando se começa a querer estar como "no meu tempo", a invocar uma certa nostalgia e a recusar a novidade...é porque já fazemos parte dos Velhos do Restelo, necessários a todas as narrativas, mas como notas de rodapé, apontamentos marginais, breves influências sobre os protagonistas...uma franja da sociedade.

sábado, 24 de agosto de 2024

À procura de Saramago

 Recentemente visitei a Fundação Saramago em Lisboa e gostei muito. Pouco tempo antes, por um acaso,  tinha estado na Azinhaga, a sua terra natal, e tinha-me quedado a olhar para a escultura que o representa....

Quem foi Saramago, o nosso único Nobel da Literatura?

Recordo-o seco e antipático numa sessão de esclarecimento na minha Universidade, ainda ele não era Nobel. Tratava-se da candidatura de Salgado Zenha que eu equacionava brindar com o meu voto...Recordo-o em memória alheia (querido Mestre, nunca me esquecerei de si, sem o ter conhecido!) ditador, prepotente, manipulador com os colegas de trabalho. Lamento-lhe a humilhação e descaso dos portugueses que não lutaram por reverter a estúpida decisão de excluir o seu livro de um concurso, nem por mantê-lo cá. Tenho a sensação que ele era demasiado bom para o país que tinha...Procuro-o magoado e excluído a recolher-se a Espanha, terra do seu amor.

Creio que ele era genial (disso tenho a certeza sempre que o leio) e intratável. Tenho uma imensa admiração pelo seu percurso de vida (estudou tarde e à sua custa) e pela sua coerência, pois sabia que ser comunista o afastaria de muitas honrarias no mundo literário. Admiro a sua luta com a Fé que diz não ter, para tentar converter Deus a um mundo melhor, para melhorar Deus...Acredito que ele queria muito acreditar em Deus, mas que este Deus não lhe servia, sobretudo pela forma como criou os homens (muitos homens) imperfeitos e maus, que não se importam de espezinhar outros para se engrandecer a si próprios; homens que se consideram melhores que os demais e assim estragam toda a Humanidade, tornando este caldo impuro e este mundo difícil de respirar.

Procuro esse Saramago inconformado que escreve para sobreviver, para respirar, para atuar neste mundo em que ainda acredita.

Resolvi então espreitar os seus diários. E encontrei-o lá todo: Genial, intratável, maus e bom, crente inconfesso zangado com Deus...mas encontrei-o também (e por essa não esperava) apaixonado e agradecido à vida. E esse - que eu não sabia que foi - resolvi registá-lo aqui.

Então Saramago sobre um bom momento da vida:

"(...) Que boas estrelas estarão cobrindo os céus de Lanzarote? A vida, esta vida que inapelavelmente, pétala a pétala, vai desfolhando o tempo, parece, nestes meus dias, ter parado no bem-me-quer..."

Cadernos de Lanzarote; Diário - I (entrada de 22 de Julho de 1993)

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Campanha Eleitoral

Comemora-se este ano o 50ºaniversário da Revolução do 25 de Abril.

Meio século! 

E eu já era nascida!

E lembro-me!

Estas afirmações exclamativas (quase parecem um poema) são a forma de eu manifestar a minha estupfacção por já ter passado tanto tempo. Eu não me sinto com tanta idade. Ou com a ideia que eu tinha de tanta idade. Claro que eu noto que a idade passou (ainda há pouco fiz um enorme esforço para me sentar num banquinho muito baixo e tive dúvidas da minha capacidade de me levantar de lá) mas parece que me sinto sempre jovem a achar que após os 50 estaria a ver a vida passar devagarinho, enquanto protegia as pernas com uma mantinha e fazia festas aos gatinhos que me acompanhariam. Bom, esse é o cenário depois das 22 h, mas a descansar do trabalho e estirada numa chaise-longue, coisa que não havia nas salas portuguesas quando eu construí a minha imagem sobre a velhice.

Foi então há 50 anos, efectivamente passados mas pouco percebidos, que aconteceu o 25 de Abril. A Revolução. A transformação. A chegada da Liberdade. O fim da Ditadura. A Democracia.

Todas estas palavras fizeram parte da minha infância e adolescência e ainda fazem (felizmente!) parte da minha vida adulta. 

Mas ao tentar acompanhar ontem o que se passava com a campanha eleitoral que ontem mesmo começou para as eleições legislativas, constato que parte das palavras que associo ao modo campanha eleitoral já não existem e/ou foram substituídas por outras.

O que é uma arruada? Porque não se fala em sessões de esclarecimento? E muitas outras dúvidas.

Resolvi assim, como uma espécie de comemoração pessoal (e de retorno a este blog) vir aqui procurar, esclarecer e guardar, algumas das palavras que me fizeram crescer em Democracia.

Uma Democracia que recordo pura, primordial, ingénua, ávida e muito, muito participativa.

Uma Democracia que associo à explosão da Cultura e do Poder Popular. Uma Democracia que associo a um Povo efectivamente Unido.

Sei que não foi tão assim. Mas gosto de a recordar assim, de acreditar que pode ter sido. Pelo menos para algumas pessoas pequeninas e crédulas como eu. Acreditei que estava a crescer num país novo que dependia de todos e de cada um para ser construído. Acreditei que fiz parte (importante) do crescimento do país, que tinha os cabelos brancos dos militantes antifascistas e as mãos calejadas de quem trabalhara horas sem fim pela mudança.

É nestas manifestações de fé que percebo que a nossa construção depende de todas as peças e que, se hoje me sinto feliz num calmo espaço rural, se tivesse crescido aqui não teria esta imagem (tão grata) da Revolução de Abril a explodir em milhares de bocas e mãos numa cidade grande, num mundo operário, no coração do País.

E as campanhas eleitorais que se seguiram ao 25 de Abril? Abriu-se-me agora no rosto um sorriso tão grande...

Saudades do passado não fazem muito mover moinhos, mas é mais pelo que fui do que pelo que sou que vou votar nas próximas eleições!



quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Da História

 "A História é uma ficção controlada." frase da autoria de Agustina Bessa-Luis, escrita numa parede da cidade de Amarante.

sábado, 15 de julho de 2023

Coragem

Hoje é sábado e decidi não fazer nada de útil, no sentido capitalista do termo.

Depois do pequeno-almoço sentei-me no sofá e dispus-me a terminar a leitura de Cinco Esquinas, o primeiro livro de Vargas Llosa a que me dediquei.

Foi uma inesperada prenda de uma vizinha, que tem assim arroubos de ternura e, por isso, este livro (dentre tantos que por aqui tenho) tinha de ser lido. Demorou um pouco, mas lá o comecei e cativou-me desde o início. Teve o mérito de me fazer voltar a ler depois do trabalho e lá fui avançando na sua floresta de palavras e imagens, interessando-me pelos protagonistas e pela história do Peru.

Terminei lá pelo fim da manhã. Satisfeita com o livro no geral. À boa maneira desta época tirei uma foto à capa e informei "os meus seguidores" de que tinha terminado a leitura deste livro. Recebi alguns comentários e sugestões de outras leituras do mesmo autor ou género e fiquei ainda um bocado a pesquisar na Internet informações sobre a veracidade do contexto político narrado. E era mesmo assim. As personagens relativas à história política do Peru eram mesmo reais.

Isto levantou-me algumas questões sobre a escrita: podemos pegar em personagens reais e torna-las personagens da nossa narrativa sem a sua autorização? São estas promiscuidades entre a realidade e a fantasia eticamente viáveis e comuns? E por aí fora...

Só isto já me anima muito pessoalmente porque eu tinha pensado que tinha desistido de escrever, mas depois ponho-me a raciocinar sobre tudo isto e parece que a vontade ainda lá está.

Mas havia uma coisa...uma coisa pequenina que me tinha rasgado a pele, mesmo nas palavras finais do livro. Antes de a explorar devo dizer que o livro não me deu grandes vontades de fazer registos ou citações: a linguagem era normal, a descrição servia o propósito de construir as personagens que fomos acompanhando ao longo da narrativa sem frases de génio. Mas aquela arestazinha de linguagem no fim...deixou-me a pensar. Foi a referência à coragem como algo de simples! Simples coragem? Será, alguma vez a coragem simples? Foi isto que ficou aqui, a incomodar-me, a desinquietar-me, num livro que achei muito bem construído, mas com uma linguagem normal.

Vou transcrever o trecho a que me refiro:

"(...) Não era extraordinário que uma rapariga entre muitas, que não era ninguém, à base de simples coragem, tivesse provocado semelhante terramoto como a queda do todo-poderoso Doutor? (...)"

Foi isto. "à base de simples coragem"...Pode a coragem, em algum momento ser simples? A coragem não será dos sentimentos (ou qualidades?) mais complexos? E agora isto: a coragem é uma qualidade, ou um sentimento, ou uma competência ou um traço de personalidade? O que é coragem? Uma arma? Um recurso?

No facebook existe um emoji para desejar coragem à pessoas...Uma força intrínseca? Uma característica pessoal? Permanente...? Uma pessoa é corajosa ou está corajosa? Cria coragem? Adquire coragem?Desenvolve coragem? Pode ser corajosa e deixar de ser? Pode ser corajosa para umas coisas e cobarde para outras? O oposto de corajosa é cobarde? Parece tudo tão extremado...deve haver muitas modalidades no meio...

De qualquer forma para mim (a meu ver...) a coragem nunca é simples.

Corajoso é o bombeiro ou o polícia...E, não poucas vezes, aqueles que consideramos heróis, confessam que tiveram medo. O que os impulsionou a ser corajosos? Algo foi, mas não pode ser simples. A coragem simples é insensatez. Por vezes dizem-me que sou corajosa em dizer certas coisas, mas, frequentemente, o que me apontam como coragem foi um acto impensado, se eu tivesse pensado bem tinha ficado calada. Com a idade, cada vez mais, a ponderação vai-se sobrepondo a esses arroubos de insensatez, a esse falar sem pensar, que é sobretudo fruto da imaturidade e da ingenuidade, nada tendo a ver com coragem.

Se pensarmos bem...é tão difícil ter coragem, que, apesar de um livro inteiro lido com prazer, não posso perdoar ao Vargas Llosa apelidar a coragem de simples. 

Ou seria uma ironia destinada aos povos que vivem (sofrem) uma ditadura "ensinando-lhes" que era "só" preciso ter coragem. E que essa coragem não precisa vir dos militares, dos bem falantes, dos políticos, dos notáveis...pode (ou deve?) vir de qualquer um de nós, de um membro do povo, de quem não se espera nada...de quem os que mandam nada esperam e por isso nada temem. Será que isto, afinal, era um recado ao poder? Era uma "moral da história" (como as que eu tinha nos meus cadernos da primária) e visava atingir todo o funcionamento das sociedades, dignificando cada um dos seus membros?

Pode ser. Talvez fosse um recado a avisar-nos que a coragem é possível. Mas recuso a ideia de que ela pode ser simples. Se é coragem é sempre (sempre!) complexa, intrincada, multifacetada. Nunca simples!

E afinal, afinal...estive o tempo todo a achar que o livro era simples (porque teria ele recebido o Prémio Nobel? sentia em surdina) e faz-me estar, quase 7 h depois de o ter lido, a pensar sobre ele, a desarrumar conceitos e a questionar-me. Tão bom! Obrigada vizinha, o Nobel era notável, mesmo.

 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Box: conflito no ringue

 Desde Junho que nada escrevo por aqui. E noutros lados também pouco. Vim aqui hoje para registar uma reflexão sobre os programas que vejo na televisão e como isso mostra que estou preguiçosa e, constatando há quanto tempo nada aqui escrevo, ainda fico mais triste comigo.

Tento convencer-me que estou numa fase de reorganização, mas...não sei. Acho que, para fase, já dura há um tempinho. E se eu me habituo?

Tenho algumas desculpas preparadas para o meu diálogo interno: que o meu trabalho atual me exige muita leitura e que quando chego a casa o que me apetece é descontrair com uma boa série policial; que podemos refletir sobre tudo, incluindo sobre as temáticas envolvidas na trama da novela da noite; que estou mais velha, mais serena, menos àvida por "intelectualices"... São todas verdades, são todas legítimas, são todas tristes e sintomáticas de um caminho de abrandamento...ou avacalhamento da minha intelectualidade.

E pronto: com um princípio ainda mais tenebroso que aquele que me trouxe aqui, cá está a temática do que vinha escrever. A organização e utilização da minha box da televisão (serviço MEO). A primeira coisa que vejo são as novelas. Agora está reduzida a uma, apenas, pois uma outra que eu estava a adorar pela temática envolvida, tornou-se ridícula na forma de abordagem. E por isso apaguei de uma assentada 6o e tal episódios, pois se os deixei acumular sem outra razão que não o desinteresse, não iria nunca vê-los. Seguem-se as séries policiais, nas primeiras temporadas com muito entusisasmo e depois, progressivamente, desligando-me de um elenco estafado e de gags repetidos. Raramente vejo mais que a 3ª temporada. Excepção para Deth in Paradise que retomei agora na temporada 11, precisamente porque a personagem principal vai mudando, mas também não estou inteiramente satisfeita. A sequência avança com as séries de humor, a maior parte delas muito antigas: os Friends já devem ser todos avós, metade do elenço de Dois Homens e Meio já morreu e o miúdo já deve ter deixado de ter crédito jovem há uma década. Depois vêm os concertos de música: esses ficam muito tempo por lá porque quero revê-los vezes sem conta. Uma ou outra série portuguesa, um ou dois escassos filmes. 

Por fim - e é isto que é dramático e que me fez dar-lhe destaque num novo parágrafo - os programas culturais, normalmente da Sociedade Portuguesa de Autores. Esses ficam por lá, porque só são chamados à reprodução quando não há mesmo mais nada. E isto é uma vergonha para mim. Que vi agora um "Original é a Cultura" sobre a morte, que era de 2021. E porquê? Porque senti que devia? Não, porque é segunda feira, esgotei as novelas gravadas e não consigo ler legendas enquanto almoço.

Se estou arrependida? Estou, mas, amanhã, quando tiver o episódio de hoje da novela, passa-me.

E é isto! É normal para a idade? Talvez: não consigo saber porque nunca antes tive esta idade e quando começar a ter opinião sobre o assunto passo para outra idade.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

O Gato que Salvava Livros: Uma Fábula Moderma

 Foi um presente. Uma ternura de um amigo muito especial, nesta época em que enfrentei as incertezas de uma operação e as limitações de um período pós-operatório.

Confesso que, apesar de muito, muito enternecida, desconfiei do conteúdo.

Mas pequei nele após a difícil leitura de João Tordo e não mais o larguei. É muito bom! Uma escrita  leve, mas que contém mensagens muito boas (e fortes e assertivas, como se diz agora) sobre os tempos que vivemos e a relação da atual sociedade com a leitura.

O que mais me espanta é que na apresentação do livro não há uma única referência ao estilo "fábula", mas eu não tenho a menor dúvida: um gato que fala, que nos apresenta aspetos importantes da nossa vida que nos estão a falhar, que funciona como a consciência social e que se apresenta como "a moral da história"? Então se isto não é uma fábula, o que é?

E pronto: se mais ninguém escreveu, tive de escrever eu. Com muito prazer.

E não resisto a colocar aqui uns pedacinhos...mas é muito pouco, porque a abordagem de cada um dos quatro episódios, no seu todo, é que nos dá a lição que precisamos aprender.

De um japonês para o mundo, de um médico para as letras. Só me falta esclarecer se a Bíblia está lá presente sem estar nomeada. Por favor, se outro leitor me puder esclarecer, eu agradeço.


«- Os livros têm alma - repetiu o gato - Um livros estimado terá sempre alma. Irá em auxílio do seu leitor em tempos de crise.» (p. 124)

«- Penso que o poder dos livros é que ...que eles nos ensinam a preocuparmo-nos com os outros. É um poder que dá coragem às pessoas e que também, por sua vez, as apoia. (...) Empatia: esse é o poder dos livros. (p. 142)

«- Se o achas difícil, é porque contém algo que é novo para ti. Cada livro difícil oferece-nos um desafio novinho em folha." (p.150)