Hoje é sábado e decidi não fazer nada de útil, no sentido capitalista do termo.
Depois do pequeno-almoço sentei-me no sofá e dispus-me a terminar a leitura de Cinco Esquinas, o primeiro livro de Vargas Llosa a que me dediquei.
Foi uma inesperada prenda de uma vizinha, que tem assim arroubos de ternura e, por isso, este livro (dentre tantos que por aqui tenho) tinha de ser lido. Demorou um pouco, mas lá o comecei e cativou-me desde o início. Teve o mérito de me fazer voltar a ler depois do trabalho e lá fui avançando na sua floresta de palavras e imagens, interessando-me pelos protagonistas e pela história do Peru.
Terminei lá pelo fim da manhã. Satisfeita com o livro no geral. À boa maneira desta época tirei uma foto à capa e informei "os meus seguidores" de que tinha terminado a leitura deste livro. Recebi alguns comentários e sugestões de outras leituras do mesmo autor ou género e fiquei ainda um bocado a pesquisar na Internet informações sobre a veracidade do contexto político narrado. E era mesmo assim. As personagens relativas à história política do Peru eram mesmo reais.
Isto levantou-me algumas questões sobre a escrita: podemos pegar em personagens reais e torna-las personagens da nossa narrativa sem a sua autorização? São estas promiscuidades entre a realidade e a fantasia eticamente viáveis e comuns? E por aí fora...
Só isto já me anima muito pessoalmente porque eu tinha pensado que tinha desistido de escrever, mas depois ponho-me a raciocinar sobre tudo isto e parece que a vontade ainda lá está.
Mas havia uma coisa...uma coisa pequenina que me tinha rasgado a pele, mesmo nas palavras finais do livro. Antes de a explorar devo dizer que o livro não me deu grandes vontades de fazer registos ou citações: a linguagem era normal, a descrição servia o propósito de construir as personagens que fomos acompanhando ao longo da narrativa sem frases de génio. Mas aquela arestazinha de linguagem no fim...deixou-me a pensar. Foi a referência à coragem como algo de simples! Simples coragem? Será, alguma vez a coragem simples? Foi isto que ficou aqui, a incomodar-me, a desinquietar-me, num livro que achei muito bem construído, mas com uma linguagem normal.
Vou transcrever o trecho a que me refiro:
"(...) Não era extraordinário que uma rapariga entre muitas, que não era ninguém, à base de simples coragem, tivesse provocado semelhante terramoto como a queda do todo-poderoso Doutor? (...)"
Foi isto. "à base de simples coragem"...Pode a coragem, em algum momento ser simples? A coragem não será dos sentimentos (ou qualidades?) mais complexos? E agora isto: a coragem é uma qualidade, ou um sentimento, ou uma competência ou um traço de personalidade? O que é coragem? Uma arma? Um recurso?
No facebook existe um emoji para desejar coragem à pessoas...Uma força intrínseca? Uma característica pessoal? Permanente...? Uma pessoa é corajosa ou está corajosa? Cria coragem? Adquire coragem?Desenvolve coragem? Pode ser corajosa e deixar de ser? Pode ser corajosa para umas coisas e cobarde para outras? O oposto de corajosa é cobarde? Parece tudo tão extremado...deve haver muitas modalidades no meio...
De qualquer forma para mim (a meu ver...) a coragem nunca é simples.
Corajoso é o bombeiro ou o polícia...E, não poucas vezes, aqueles que consideramos heróis, confessam que tiveram medo. O que os impulsionou a ser corajosos? Algo foi, mas não pode ser simples. A coragem simples é insensatez. Por vezes dizem-me que sou corajosa em dizer certas coisas, mas, frequentemente, o que me apontam como coragem foi um acto impensado, se eu tivesse pensado bem tinha ficado calada. Com a idade, cada vez mais, a ponderação vai-se sobrepondo a esses arroubos de insensatez, a esse falar sem pensar, que é sobretudo fruto da imaturidade e da ingenuidade, nada tendo a ver com coragem.
Se pensarmos bem...é tão difícil ter coragem, que, apesar de um livro inteiro lido com prazer, não posso perdoar ao Vargas Llosa apelidar a coragem de simples.
Ou seria uma ironia destinada aos povos que vivem (sofrem) uma ditadura "ensinando-lhes" que era "só" preciso ter coragem. E que essa coragem não precisa vir dos militares, dos bem falantes, dos políticos, dos notáveis...pode (ou deve?) vir de qualquer um de nós, de um membro do povo, de quem não se espera nada...de quem os que mandam nada esperam e por isso nada temem. Será que isto, afinal, era um recado ao poder? Era uma "moral da história" (como as que eu tinha nos meus cadernos da primária) e visava atingir todo o funcionamento das sociedades, dignificando cada um dos seus membros?
Pode ser. Talvez fosse um recado a avisar-nos que a coragem é possível. Mas recuso a ideia de que ela pode ser simples. Se é coragem é sempre (sempre!) complexa, intrincada, multifacetada. Nunca simples!
E afinal, afinal...estive o tempo todo a achar que o livro era simples (porque teria ele recebido o Prémio Nobel? sentia em surdina) e faz-me estar, quase 7 h depois de o ter lido, a pensar sobre ele, a desarrumar conceitos e a questionar-me. Tão bom! Obrigada vizinha, o Nobel era notável, mesmo.